Em estudo anterior abordei a questão da revisão disciplinar em razão do reflexo da decisão penal no âmbito do direito administrativo, nele tive a oportunidadede fazer uma reflexão sobre o direito administrativo e o direito penal e suas interconexões, sendo certo que o segundo tem total atuação definidora sobre o primeiro, quando julga o mérito da questão em determinadas situações, ou seja, quando define a existência ou não do fato, ou quem seja o seu autor.
Em outras palavras, quando a Justiça Criminal julgao mérito dos fatos e condutas discutidos na esfera administrativa – autoria e existência ou não do fato típico–, reflete essa decisão efeitos erga omnes sobre a instância administrativa, razão pela qual será legitima a revisão do procedimento administrativo para que esse reflita a realidade jurídica da questão, evitando–se, dessa forma, que haja o bis in idem ou ainda um conflito de decisões de matizes de responsabilidades diversas.
Não se pode deixar de observar a plena eficácia da sentença penal absolutória do servidor público ou doagente político no âmbito do processo administrativo nos casos onde ele não é o autor do fato ou que o próprio fato não existiu, sob pena de condená–lo a uma desesperadora, triste e amarga injustiça, consubstanciada na demissão, aposentadoria compulsória ou cassação de umaaposentadoria de quem, pela ótica da Justiça Criminal, nada deve, por não ter cometido ilícito algum lato e stricto sensu.
Não se pode simplesmente dissociar o ilícito penal do ilícito administrativo, mesmo sendo as instâncias independentes, porque seria o mesmo que manter parte de uma condenação e parte de uma absolvição, como se a aplicação da norma punitiva, afastada pelo Poder Judiciário na seara penal, pudesse ser, em sentido inverso, reconhecida pelo Poder Administrativo na seara administrativa.
As instâncias penal e administrativa sancionadoras são independentes entre si, mas se imbricam para fins de procedibilidade e validade para o devido reflexo absolutório ou punitivo quando os fatos investigados são os mesmos.
Sobre o tema já havíamos dito:
“O dogma de que as instâncias por serem independentes não influenciam, acabou sendo plenamente factível ao servidor público utilizar de uma absolvição criminal para apagar os elementos formadores da culpa funcional, na esfera administrativa.”
Sempre defenderemos a necessária influência das instâncias como forma de garantia a procedibilidade em determinados casos e a distribuição de justiça, pois sobre os mesmos fatos investigados, o agente público poderá responder na instância penal, administrativa e na esfera civil, cabendo ressaltar que, mesmo absolvido em todas elas, segundo dicção da Lei Federal 8.429/92, ainda poderá responder para fins de subsunção de conduta de improbidade administrativa.
Sabe-se que a Administração Pública dever pautar seus atos pela legalidade e moralidade, e, por evidente, seria totalmente ilegal e imoral que a decisão de uma Comissão De Inquérito ou de um Órgão Administrativo Disciplinarfosse robusta e suficiente em si para suplantar o autorizado posicionamento final e definitivo do Poder Judiciário, que, ao declarar inocente o servidor público ou agente político acusado de um delito funcional, adentrando o mérito da quaestio, espraiará, necessária e inafastavelmente, na instância administrativa seus efeitos, a menos que essadecisão judicial não tenha decidido quanto ao fato criminoso de sua autoria, como, v.g., acontece na hipóteseda prescrição.
Dessa maneira, fixadas tais premissas iniciais, resta saber agora a quem competiria a apreciação de uma eventual revisão disciplinar no caso de absolvição criminal com tais nuances de reconhecimento de não ser o servidor público ou agente político o autor do fato ou mesmo de não ter esse fato existido, enfim, qual órgão teria competência para a Revisão Disciplinar em razão do reflexo da decisão penal no âmbito do Direito Administrativo Disciplinar.
Com efeito, declarado pelo Juízo Criminal que o fato não é imputável ao servidor público ou agente político disciplinarmente punido ou ainda que esse fato não existiu fenomenologicamente, não sobra nenhum resíduo dedúvida sobre a impossibilidade de se fundar a sanção disciplinar prevista na Lei Federal 8.112/90 ou nas leis deregência de categorias especiais de agentes políticos, tais como a Lei Orgânica da Magistratura e Lei Orgânica doMinistério Público, diante dos elementos criminais ilícitos, tudo em razão da preponderância da coisa julgada criminal ao caso concreto.
Portanto, se absolvido ou afastada a determinada conduta infracional do agente público ou político no âmbito criminal, como mantê-la para fins de improbidade administrativa, ou para fins de Processo Administrativo Disciplinar? A reposta é desenganadamente negativa, pois não é possível manter de forma válida e eficaz uma acusação de improbidade administrativa diante de tais situações penais, assim como não terá mais validez uma de infração disciplinar em tais casos.
Na verdade, não se pode dissociar o microssistema do Direito Administrativo Sancionador, que possui várias concorrências entre órgãos fiscalizadores (Tribunal de Contas, Poder Disciplinar, Poder Fiscalizador, Ministério Público, etc…) e os efeitos da sentença absolutória penal. É preciso manter a sua harmonização sob pena de incidência em situações de absoluta injustiça, com o que, em sentido inverso, não se coadunaria com o ideal de justiça.
Sobre essa constatação, referente a necessidade de harmonização sistemática, nada mais preciso do que relembrar o que vai disposto no artigo 126, da Lei Federal8.112/90, litteris:
“Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminalque negue a existência do fato ou sua autoria”.
Esse artigo supramencionado foi construído pelo legislador para evitar as injustiças perpetradas no passado, onde o servidor público ou agente político absolvido naesfera criminal, sob a falsa premissa da independência das instâncias, permanecia punido na instância administrativa pelos mesmos fatos, que apesar de inexistentes ou de não ser o seu autor, produziram efeitos distintos no âmbito interno da repartição pública.
Não custa dizer que em boa hora veio à tona o artigo126, da Lei Federal 8.112/90 que, com todo o seu vigor e facilidade de intelecção, evita a punição injusta e ilegal do servidor público que se submeteu ao desgastante procedimento criminal.
Aliás, destaque–se ser isso influência da coisa julgada material criminal sobre o litígio civil que versa sobre o mesmo fato e autoria, possuindo eficácia absoluta ou erga omnes, com sede legal no Artigo 935, do Código Civil:
“Art. 935. A responsabilidade civil é independente dacriminal, não se podendo questionar mais sobre aexistência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”.
Embora separadas, autônomas e independentes, não são, entretanto, impenetráveis, sendo certo que há uma hierarquia legal contida do artigo 935, acima transcrito, pelo qual o ilícito administrativo é um minus frente ao ilícito penal, o que faz com que as decisões prolatadas na instância criminal tenham a repercussão necessária na instância administrativa (quanto à autoria e o fato, que decididos na mais alta não podem ser rediscutidos na mais baixa).
É dizer que a decisão jurisdicional na instância cuja competência material tem por objeto o delito penal penetra no âmbito reservado a competência da jurisdição civil, e nela produz os efeitos prejudiciais a que se refere o artigo 935, do Códex Civil, isto é, dirime no cível e no administrativo qualquer litígio que tenha por objeto a existência do fato delituoso ou quem seja o seu autor.
Em recente decisão proferida inicialmente de forma monocrática pelo Ministro Gilmar Mendes, na Reclamação nº 41557-SP, houve a expressa declaração da mitigação da independência entre as esferas penal e cível, em especial quando a matéria envolver o Direito Administrativo Sancionador.
Destacou a decisão monocrática, depois confirmada pela maioria do Colegiado, na supracitada Reclamação nº 41.557-SP, sobre a aplicação do art. 935 do Código Civile a sua extensão, no exato sentido de vincular as demais esferas de controle à sentença penal, destacando que a independência das instâncias (civil, criminal e a administrativa é mitigada.
Essa atual posição jurídica da Suprema Corte de Justiça se preocupa com a real possibilidade de haver punição em duplicidade (bis in idem) sob o argumento de ser insustentável a independência plena das esferas de controle externo da Administração Pública fora do figurino legal e constitucional indicados no seu julgado da reclamação acima citada.
É uma evolução, pois a grande maioria da doutrina e a própria jurisprudência majoritária somente admitiam a repercussão do título penal quando se negava a autoria e a materialidade do fato, na forma do artigo 126 da Lei Federal 8.112/90, não admitindo a repercussão da absolvição por falta de provas na esfera do Direito Administrativo Sancionador.
Na verdade, como diz Suay Rincón, os ilícitos administrativos estão à semelhança do que ocorre com os ilícitos penais, a serviços de valores substantivos. Em assim sendo, o Direito Administrativo Sancionador não poderá ser arbitrário ou insensível à salutar influência do direito penal em tais hipóteses
O direito punitivo estatal único compreende os ilícitos penais e administrativos, como realçado por Alejandro Nieto, desdobrados do Direito Penal e do Direito Administrativo Sancionador, se integrando em um edifício único de surpreendente harmonia, formado pelo ius puniendi do estado.
Existindo uma identidade ontológica entre os delitos e as infrações administrativas, nasce o direito punitivo único, como unidade do ius puniendi estatal, em prol da segurança jurídica e da estabilidade das relações com o poder público. Não há como fazer mais dissociação sob pena de se macular a harmonia do sistema jurídico.
Isso porque, quando for o mesmo fato ilícito investigado, não há como não se adotar um enfoque conjunto no campo da política sancionadora, como averbado pela professora Helena Lobo da Costa:
"Para além de refletir e buscar solucionar os complexos problemas dogmáticos trazidos pela aproximação entre direito penal e direito administrativo, é, também, preciso adotar um enfoque conjunto no campo da política sancionadora. Assim, seguindo a proposta Rando Casemiro, crê-se que uma política jurídica conjunta, que leve em conta os dois ramos sancionadores, é imprescindível para aportar um mínimo de racionalidade à questão."
Vale relembrar ainda que o Artigo 126, da LeiFederal 8.112/90 é um dispositivo aplicável não somenteaos servidores públicos, mas também aos Magistrados, consoante a normativa do Artigo 26, da Reso