Quem passa diariamente pelo centro de Cuiabá (MT) pouco nota que dois prédios na avenida Getúlio Vargas são representantes de tempos e estilos distintos, erguidos lado a lado. O modelo grandioso da Catedral Metropolitana Basílica do Bom Senhor Bom Jesus guarda em suas paredes resquícios da arquitetura neoclássica, com seus adornos e ornamentos que remetem à antiguidade greco-romana.
O Palácio Alencastro, que abriga a prefeitura, com o seu estilo “limpo” e funcional, busca expressar a era moderna influenciada principalmente pela escola alemã de Bauhaus, enfocada mais no objetivo das construções que na manifestação extramundana. A história de Cuiabá pode, também, ser contada pelas duas construções.
O arquiteto José Afonso Portocarrero, professor da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), conta que a Catedral conserva elementos de diferentes épocas, e o modelo atual tem traços marcantes do modernismo.
“A Catedral é eclética, tem elementos neoclássicos e modernos. É uma mistura de elementos dentro da arquitetura religiosa. Certamente, guarda a imponência pelo seu tamanho, por elementos da própria religião e o do neoclássico”.
O neoclássico

Mas, existe o lamento pela perda da história. O prédio anterior da Basílica foi demolido nos fins da década de 1960, sob a justificativa de que a estrutura não suportava o movimento em seu torno. O que existiu até 1968 era sustentado desde o início do século XVIII. Inicialmente, foi construída de pau-a-pique em 1722, três anos após a fundação da cidade. Dezessete anos mais tarde, passaria por reconstrução para mudança da estrutura para a taipa.
Um material fortificado pela junção da terra batida à estrutura de pau-a-pique. O mesmo tipo usado nos casarões centenários construídos no Centro Histórico. “A taipa é terra batida numa espécie de caixote, que era socada em pilão, uma mistura de terra. Se ia socando até formar a primeira fileira da parede e assim sucessivamente, até se conseguir formar a parede toda”, explica a professor Luciana Mascaro, pesquisadora na área da preservação do patrimônio histórico.
O estilo que ainda se vê no Centro Histórico é do período colonial do País. Os portugueses que chegaram ao Brasil traziam na bagagem estilos europeus que foram adaptados aos recursos de materiais disponíveis. No caso de Cuiabá, uma cidade surgida na colônia a partir da exploração do ouro, as madeiras e a terra mistura a barro serviram de base para as construções.
E os estilos delas é presente: casas conjugadas umas às outras e as ruas delimitadas pela residência, pouco ou nenhum espaço para o calçamento – de onde deve ter surgido a expressão “porta da rua”.
“Claro que, ao longo do tempo, essa arquitetura vai sofrendo algumas transformações, mas esse conjunto todo, essa área do núcleo central, com esse traçado que é orgânico, que tem as três ruas principais (Baixo, Meio, Cima), isso que motivou o tombamento [do Centro Histórico], que tem suas raízes lá atrás no período colonial, no século XVII”, diz Mascaro.
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A Casa de Bem Bem, na rua Barão Melgaço, é um exemplo ilustre de construção desta época. Hoje, o prédio está em ruína por causa do impacto das chuvas sobre uma estrutura com falta de manutenção.
A Catedral do Bom Jesus acompanhou a evolução da arquitetura da cidade e ganhou uma torre sineira em 1769. Uma nova modificação de grande escala ocorreria dois séculos mais tarde. Com isso de artefatos modernos, e o prédio com mais de 200 anos foi demolido, com uso de dinamite. O projeto de modernização do Brasil durante o regime militar imprimiu os contornos “limpos” no prédio.
A virada na metade do século
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O Palácio Alencastro não guarda nenhuma lembrança dos estilos colonial e neoclássico, mas teve seu primeiro modelo inspirado nas correntes. A construção serviu historicamente, a partir de 1819, para abrigar os administradores e até 1969 foi chamada de Palácio Presidencial. Sua fachada (foto) continha traços guardados pela história da Roma Antiga.
As caraterísticas transmitiam simplicidade formal, com cornijas e platibandas. As paredes, já de pedra ou tijolo, eram revestidas e pintadas de cores suaves, e a entrada tinha elementos salientes, com escadarias, colunatas e frontões e valorizavam a decoração dos interiores com revestimentos e pinturas.
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Palácio da Instrução, que hoje abriga a Biblioteca Estadual Estevão de Mendonça, do mesmo século possui estilo parecido com uma escadaria na entrada, janelas grandes nos diversos andares, e um átrio que servia de pequeno jardim. Ele mudou teve sua função alterada de base militar, em 1889, na Proclamação da República, para a conservação em livros.
“Essa arquitetura tem muito do neoclássico, de um neoclássico mais historicista; já está dentro do período eclético, que é no século XIX. Algumas delas, não. Por exemplo, o Sesc Arsenal, tem um jeitão neoclássico, mas está dentro do período neoclássico, que anterior ao eclético”, comenta a professor Luciana Mascaro.
O Alencastro começou a ganhar sua cara atual a partir de 1959, quando o prédio neoclássico foi demolido, para dar lugar ao modernismo. Um estilo minimalista, que exclui os elementos que rementem ao passado, e busca “otimizar” o espaço para a demanda de uso – sem excessos arquitetônicos ou arranjos que não tenha função para a demanda.
“É o mesmo estilo do Terminal Rodoviário de Cuiabá e do Palácio Paiaguás (complexo da administração pública estadual). É um estilo inspirado em Brasília, do [arquiteto] Oscar Niemeyer. São prédios que estão dentro da história de Cuiabá que representa a expansão acelerada da cidade a partir da década de 1960, 1970”, diz o arquiteto José Afonso Portocarrero.
“A ideia falsa do progresso”

Hoje, o estilo moderno prevalece nos traços das construções mais atuais de Cuiabá. Mas, Portocarrero afirma que há um movimento de retomada do neoclássico, ainda tímido.
As intervenções arquitetônicas mais expressivas foram os projetos públicos criados para a Copa do Mundo de 2014. Do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) a trincheiras e viadutos a intenção era dar uma cara de um moderno contemporâneo a Cuiabá. Mas, os projetos pouco elaborados, as obras inacabadas – melindrados pelo aspecto político – colocaram a proposta sob o risco de fiasco.
A professora Luciana Mascaro alerta para “a falsa ideia de progresso” como objetivo de transformação social pela arquitetura. “Ruas grandes, largas, prédios para todos os lados não significa necessariamente que a saúde da cidade está bem, que esteja em progresso. A cidade precisa ser pensada para integrar seus habitantes, tornar a convivência mais possível”.
Para José Portocarrero, Cuiabá vive hoje um segundo momento de descontrole de expansão. A primeira iniciou em meados do século XX, quando, em 40 anos, houve expansão dez vezes do que existiu em todo período anterior da cidade.
“A cidade cresceu muito e muito rapidamente, com isso o perímetro urbano foi expandido, sem a ocupação dos vazios urbanos, que ainda existem bastante. Hoje, o perímetro urbano está se expandido novamente com a construção de residenciais para fora do limite que existe”, comenta.
Ambos os arquitetos concordam que o plano diretor deve ser a matriz para pensar a cidade. “Mas, existe muita resistência da prefeitura em lidar com isso. É responsabilidade dela, sim, de montar esse plano diretor para direcionar o desenvolvimento da cidade”, diz Luciana Mascaro.
Ela afirma que esse direcionamento passa também pela integração do antigo com o novo, “porque o patrimônio só pode ser preservado se houve ações para isso, e a preservação do antigo precisa ser pensada pelo novo”.
Portocarrero diz ver na integração da diversidade cultural o caminho para Cuiabá se projetar para os próximos os séculos. “Hoje, nós temos uma diversidade de povos em Cuiabá, pessoas de todos os lugares. Esse é caminho para pensar Cuiabá dos próximos 300 anos, buscando criar um ambiente de revitalização”.