Com: Raul Bradock/ Cintia Borges
Fotos: Reprodução
Dois alunos militares morreram em Cuiabá nos últimos seis anos após serem submetidos a treinamentos. Abinoão Soares de Oliveira foi a óbito por não resistir aos afogamentos durante treino para compor o quadro do Centro Integrado de Operações Aéreas (Ciopaer) em abril de 2010.
Somente seis anos depois a Corregedoria da Polícia Militar decretou prisão administrativa de 11 policiais, mas nenhum deles está recluso. A Polícia Civil concluiu que ele morreu por excesso de vaidade dos “caveiras”, denominação dos treinadores.
O processo, que aponta dos 27 réus e 20 vítimas, está concluso para julgamento na 7ª Criminal, de responsabilidade da juíza Selma Arruda.
Neste mês de novembro, Rodrigo Claro, de 21 anos, também morreu após treino com sessões de “caldos”.
A principal acusada é a tenente Izadora Ledur de Souza Dechamps, que teria aplicado os afogamentos. Ela já havia sido denunciada por praticar pressão psicológica nos alunos.
Aluno bombeiro morre após sessão de “caldos”
Dez de novembro de 2016 e o cenário era a Lagoa Trevisan, em Cuiabá (MT). Alunos realizavam treinamento do Corpo de Bombeiros Militar de Mato Grosso. Tudo corria normalmente até que um dos alunos sentiu-se mal e foi liberado do treino.
Era o jovem Rodrigo Claro, 21 anos, que morreu após cinco dias internado no Hospital Jardim Cuiabá, na capital. Ele deu entrada no hospital com aneurisma cerebral após ter recebido uma série de afogamentos durante o curso, segundo a família. O Corpo de Bombeiros diz que o mal-estar teria sido provocado após uma travessia na lagoa.
Na data do fato, Rodrigo teria relatado fortes dores de cabeça e exaustão, sendo liberado dos treinos na água. Colegas disseram que ele foi mandado embora com extrema grosseiria, sendo agredido psicologicamente. O jovem ainda teria retornado sozinho de moto para o batalhão no Bairro Verdão. Ele foi levado até uma policlínica, teve duas convulsões e foi então encaminhado ao hospital, dando entrada em estado crítico.
A mãe e outros alunos colegas de curso de Rodrigo acusam a tenente Izadora Ledur – que é responsável pelo treinamento dos novos soldados da corporação – por excessos nos treinos. O coronel Alessandro Borges Ferreira, responsável pelo inquérito que vai apurar a fatalidade, confirmou o afastamento temporário de Izadora das funções.
“No início da travessia, pelo que me foi passado pelos colegas, a menos de dez metros que ele estava nadando na lagoa para fazer a travessia, a tenente começou a afogá-lo, segurando na cintura dele e levando para o fundo da lagoa”, afirma Jane Patrícia, mãe do jovem.
Ainda segundo a mãe, o filho só conseguiu sair da água com o auxilio dos colegas que tiraram ele de lá, mesmo com a tenente o puxando pela cintura para afogá-lo inúmeras vezes.
“Ele estava com outros três colegas e o menino que estava mais próximo é um menino pequeno, mas ele foi muito forte porque conseguiu trazer meu filho de volta com a tenente agarrada na cintura dele, porque ela queria permanecer com ele no fundo da água. Os colegas conseguiram atravessar com o meu filho e ela a todo momento tomando meu filho dos colegas para afogá-lo novamente”, conta a mãe.
Exclusão
De acordo com o coronel Alessandro Borges Ferreira, há a possibilidade de exclusão, dependendo da gravidade do que for apurado. “Caso sejam comprovados os abusos, a pena vai de advertência, à exclusão, dependendo da gravidade dos fatos que a gente apurar. Vai ser um inquérito na busca da verdade dos fatos reais que aconteceram no dia do treinamento. São muitas informações e algumas denúncias”.
A tenente, garantiu o coronel, não participará mais dos treinamentos do pelotão e decisões só serão tomadas após a análise de denúncias e do acumulado de informações. Sobre os treinamentos, ele afirmou que a metodologia utilizada é normal.
O laudo da morte de Rodrigo Claro apontou como causa indefinida inicialmente, um novo resultado deve ficar pronto no Instituto Médico Legal (IML) de Cuiabá nos próximos dias. A Secretaria de Estado e Segurança Pública (Sesp) disse ao Circuito Mato Grosso que “qualquer avaliação neste momento seria precipitada” e que aguarda a conclusão das investigações à respeito do caso e só então irá se pronunciar.
Tenente já havia sido denunciada
Exatamente um ano antes do treinamento que ocasionou a morte de Rodrigo Claro, um processo contra a tenente Izadora Ledur de Souza Dechamps foi aberto pelo Ministério Público Estadual (MPE) por maus-tratos durante treinamento de soldados do Corpo de Bombeiros.
O denunciante acusou a tenente e um sargento da corporação de praticar pressão psicológica e, inclusive, de obrigar os alunos a dormir no chão em meio a bichos perigosos, como escorpiões. Por “falta de elementos informativos suficientes”, o juiz da 11ª Vara Especializada da Justiça Militar da Capital, Marcos Faleiros da Silva, arquivou o inquérito policial.
O processo contra a tenente Izadora Ledur e também contra seu colega, o sargento Josymar de Oliveira Silva, foi aberto no Ministério Público Estadual (MPE) dia 10 de novembro de 2015 sob a responsabilidade do promotor o promotor Allan Sidney Souza.
Procurada pelo Circuito Mato Grosso, a tenente Ledur não respondeu.
“Caveiras” mataram aluno por “excesso de vaidade”
Em maio de 2010 a delegada Ana Cristina Feldner afirmou que o excesso de vaidade dos “caveiras”, como são intitulados os oficiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope), foi o principal fator que levou à morte o soldado da Polícia Militar de Alagoas, Abinoão Soares de Oliveira.
O soldado morreu vítima de tortura, por meio de afogamento, no dia 24 de abril do mesmo ano, durante treinamento do 4º Curso de Tripulante Operacional Multimissão (TOM-M), realizado no Terra Selvagem Golf Club, na estrada de acesso ao Lago do Manso, em Chapada dos Guimarães, a 50 km de Cuiabá.
“Caveiras são aqueles que concluem o curso de operações especiais, recebendo ao final o direito de se tatuar com o símbolo e ser considerado como um ser especial”, explicou a delegada. Por ser um "caveira", definiu Feldner, os instrutores se acham no direito de submeter os alunos a se sujeitarem às mesmas humilhações e torturas que eles aceitaram e se submeteram.
O treinamento, de acordo com o inquérito policial, foi ministrado pelos tenentes Carlos Evane Augusto e Dulcézio Barros de Oliveira. Ambos foram indiciados e presos por homicídio triplamente qualificado (motivo torpe, tortura e impossibilidade de defesa).
A delegada relatou que tudo começou no dia 22 de abril quando Abinoão teria passado a ser perseguido e punido por ser "uma pessoa ímpar, qualificada e prestativa, com invejável espírito de humanidade e preocupação com os colegas".
Nesse mesmo dia seria realizada uma instrução de “ofidismo”, com a finalidade de identificar animais peçonhentos. Foi aí que Carlos Evane Augusto teria aplicado spray de pimenta nos olhos de Abinoão. Ao final da atividade Evane falou ao militar que iria recomendá-lo para a instrução dos "caveiras", marcada para o dia 24.
A instrução foi ministrada pelo tenente Barros com o apoio de Evane. “O tenente Evane estava de plantão no Bope e não deveria estar no local do curso. O oficial se ausentou do quartel para brincar de afogamento junto com Barros”, pontuou delegada.
Barros e Evane teriam chegado ao local fazendo arruaça e utilizado um megafone para gritar em apologia a uma suposta superioridade. Em depoimento, o policial Jhonny Wanderson Sena Lima relatou: “Falavam que se não saísse nenhum aluno do curso de forma voluntária a instrução seria horrível, que coisas horríveis iriam acontecer e que iria morrer gente".
Gravata e mata-leão
Como não houve desistência voluntária, Barros e Evane distribuíram três boias, que foram colocadas no pescoço pelos militares Claudomir, Abinoão e Thiago, marcados para sofrer até desistirem do curso. Foi aí que teria começado a sessão de afogamentos, com “gravatas”, golpes de “mata-leão” e outros meios de tortura.
A delegada fez uma fala contundente no relatório final: "Evane e Barros ainda aplicaram o golpe de misericórdia, covardemente e com o exercício já encerrado… Golpe este, fatal, pois conforme demonstrado, Abinoão saiu da água morto! Pelas mãos de assassinos frios e cruéis travestidos de instrutores!!!"
Em outro trecho, o militar Jhonny Wanderson Sena Lima conta que o tenente Evane segurou e deu mais um "caldo" em Abinoão, levando o aluno a desmaiar debaixo d'água e não subir mais com vida. “Mesmo assim, o tenente Evane dizia: Você é bom em apneia, aluno. Então, fica mais um pouquinho aí, e assim continuava a segurar o corpo do aluno embaixo d'água”.
O tenente Evane tirou Abinoão da água já inconsciente e na areia começou a gritaria pelo socorro, pedindo ambulância e oxigênio, e fez massagem cardíaca no aluno sem sucesso.
Ao final, a delegada Feldner escreve. "Por fim, verifica-se o caos naquele local: aluno com parada cardiorespiratória, ou seja, morto; aluno convulsionando; aluno desmaiado”.
Os policiais indiciados negaram a autoria do crime e declararam outra situação, compatíveis a uma instrução de boas maneiras. Porém, a Justiça condenou e mandou prender 11 dos 17 indiciados.
Momentos de horror
Aluno 03
Luciano Frezato (PM/PR) – escolhido como xerife, gritou por sua mãe, convulsionou e teve que ser levado de helicóptero para o hospital
Aluno 05
Claudomir Braga (PM/TO) – agraciado com a boia, clamou por Deus durante a sessão de afogamento, necessitando de socorro médico no dia seguinte e, ao final, recebeu o apelido de "pulmão de sapo" pelos demais alunos por ter conseguido sobreviver
Aluno 34
Thiago Andrigo (PM/GO) – agraciado com a boia, ficou inconsciente e teve que ser levado ao hospital
Aluno 14
Abinoão Soares de Oliveira (PM/AL) – agraciado com a boia, saiu da água morto
Juiza Selma irá julgar
Onze policiais que participaram do curso de treinamento para compor o quadro do Centro Integrado de Operações Aéreas (Ciopaer) de Mato Grosso no ano de 2010, seis oficiais e cinco são praças, tiveram prisão administrativa decretada no dia 30 de março deste ano, seis anos após a morte de Abinoão Soares de Oliveira.
Ao divulgar a prisão, a Corregedoria informou que se a Justiça condenar, todos devem ser exonerados. A Corregedoria reconheceu que a morte de Abinoão foi provocada por causa de excesso.
PM diz que caso é isolado
A reportagem do Circuito Mato Grosso entrou em contato com a Polícia Militar do Estado de Mato Grosso (PM-MT), que falou a respeito do caso por meio do coordenador de comunicação major Murilo Franco.
Franco explica que lamenta profundamente a morte do soldado Anoão Soares e que, tal perda sempre marcará a instituição. Conta também que situações como está são evitadas incessantemente.
“Definitivamente lamentamos profundamente o ocorrido com o Soldado PM Abinoão Soares de Oliveira, pois a perda de uma vida sempre nos impactará e marcará profundamente. A Instituição procura mitigar incessantemente a probabilidade de novas situações ocorrerem. A Polícia Militar realiza árduo planejamento em seus cursos. Não admitimos excessos”, conta.
O major explica ainda que em seis anos mais de 8.582 vagas em cursos internos foram disponibilizadas. “Nestes últimos seis anos disponibilizamos 8.582 vagas em cursos internos. Certamente os militares foram capacitados em diversos cursos e isso demonstra, de forma inequívoca, que buscamos constante aprimoramento técnico-profissional. Existimos para servir e proteger a sociedade e o fazemos com muito orgulho e dedicação”, ressalta.
Objetivando a qualificação do aluno
O coordenador de comunicação da Polícia Militar também explica que a qualificação do aluno é o principal objetivo dos treinamentos, para que este esteja apto a realizar os trabalhos. “Formar, capacitar e especializar os militares é a melhor maneira de torná-los aptos à nobre missão de servir e proteger. O treinamento é essencial para o preparo, para o pronto emprego e para o aperfeiçoamento das técnicas policiais. Quanto mais treinarmos, mais segurança com qualidade será ofertada para a sociedade”.
Major Franco salienta que é raro acontecer ‘desligamento’ de alunos durante a execução dos treinamentos. “Os alunos, via de regra, suportam a carga de treinos sendo um fato raro ocorrer desligamento”.
Segundo o militar, os treinamentos são acompanhados por profissionais habilitados, mas cada organismo reage de maneira diferente diante de atividades físicas intensas. “É claro que diante de uma atividade física intensa cada organismo responde fisiologicamente de determinada forma, conforme condicionamento físico individual. A rotina militar é intensa e, para algumas Unidades da PMMT, é necessário condicionamento físico acima da média”.
Franco também salienta que o caso Abinoão foi isolado e que não condiz com a realidade de 8.500 policiais formados em seis anos. “A perda de uma vida jamais será a finalidade de um curso ou treinamento da Polícia Militar. A Instituição jamais coadunará com isso. Em seis anos foram mais de 8.500 vagas em cursos internos”.