Cidades

Duas pessoas infectadas pelo vírus HIV por dia em Mato Grosso

A expressão “saltar no escuro” é usada para demonstrar o desconhecimento de algo que está em um futuro próximo, mas que, por algum motivo, é preciso ser enfrentado. Para os românticos, há um ‘quê’ de mistério, que muitas vezes serve para valorizar aquilo de bom que pode ser encontrado na situação seguinte, após o breu. Numa outra versão, essa situação de lidar com algo incerto é mais percebida como inconsequência. Talvez a segunda visão esteja mais próxima do quadro de infecção pela Aids em Mato Grosso, mas o termo mais usado por especialistas em saúde pública é '‘banalização’'.

Há três anos Mato Grosso entrou em uma sequência com média de duas pessoas infectadas pelo vírus HIV diariamente, com maior incidência entre jovens dos 13 a 29 anos. Segundo balanço da Secretaria Estadual de Saúde (SES), em 2013 foram registrados 743 casos (2,03 ocorrências/dia); no ano seguinte, as ocorrências subiram para 774 (2,12); em 2015 houve redução para 572 diagnósticos, mas a incidência continuou preocupante (1,56).  Só neste ano, já houve registro de 49 casos.

No mesmo período, ainda conforme a SES, 614 pacientes morreram por causa da doença: 195 em 2013; 209 em 2014; 188 em 2015 e 22 em 2016, até o mês de junho. Outro fator preocupante pode ser demonstrado pelo registro de pessoas com o vírus HIV, fase em que a doença está incubada, sem manifestação. Desde 2013, há identificação de 1.026 pessoas.

O médico infectologista Ivens Cuiabano diz que o quadro de Mato Grosso se assemelha ao de outros Estados no Brasil, que apresentaram aumento de casos. Conforme o Ministério da Saúde, foram registrados 43 mil em 2010 e 44 mil em 2015.  No mundo, a Organização das Nações Unidas (ONU) aponta para o perigo de ressurgimento de uma epidemia da Aids.

“O serviço público de saúde precisa fazer um trabalho mais forte, principalmente entre homossexuais que voltam a ser público com maior incidência de doença. É necessário melhorar o atendimento médico para doenças que podem surgir em decorrência da Aids, como a deficiência dos rins, também aumentar o número de médicos, para possibilitar tratamento detalhado”, diz.

Para o médico de infectologia Ivens Cuiabano, o menor número, no entanto, não deve ser entendido como redução da incidência. Isso indica que os pacientes já começam o tratamento da doença numa fase de desenvolvimento, o que dificulta a reversão do quadro. Além disso, segundo o Ministério da Saúde, para cada caso identificado, outros três são estimados em uma situação em que o próprio portador desconhece.

O infectologia diz que isso pode indicar grande probabilidade de o número de casos identificados aumentar nos próximos anos em Mato Grosso. Ele não descarta que o cenário de infecção retorne à década de 1980, quando os primeiros casos de infecção foram registrados no País.

“É claro, morriam mais pessoas logo que a doença foi descoberta. Hoje se fizer o tratamento adequado, ela pode nem morrer por causa da Aids, mas por um outro motivo. O problema é que fica difícil explicar o que está acontecendo. Há mais informação do que antes, métodos de prevenção, mas nós estamos em uma nova fase de epidemia da doença”, comenta.

O aumento da doença em um público considerado inesperado faz a evolução aparecer como epidemia.

Ele enfatiza que o uso de preservativo continua sendo o método mais eficaz para prevenir a doença. Apesar de não garantir 100% de proteção, não existe alternativa mais segura para o relacionamento sexual. “Nós deixamos uma margem de cinco pontos percentuais para a situação de acaso, que pode acontecer, mas não é a regra, e é um produto disponível na rede pública de saúde. Agora, como vou te explicar o que está acontecendo? Há um grande fator de desleixo da população”.

Dez cidades têm mais de cem diagnósticos

Conforme balanço da Secretaria de Estado de Saúde (SES), dez cidades em Mato Grosso têm mais de 100 pacientes diagnosticados com Aids, entre 2010 e 2016. Cuiabá aparece bem à frente, com 986 casos, seguida por Rondonópolis, onde há 620 diagnósticos.  Várzea Grande aparece logo em seguida com 370 casos, Sinop (197), Tangará da Serra (151), Sorriso (137), Primavera do Leste (136), Cáceres (134), Barra do Garças (107), Juína (102).  

Três municípios têm quadro de diagnósticos entre 50 e 100 pacientes – Nova Mutum (71), Alta Floresta (58) e Lucas do Rio Verde (58).  Os outros 122 municípios possuem quadro que variam entre 1 e 49 pacientes.

Balanço da SES aponta também que entre 2007 e 2016, 64 crianças e adolescentes, com idade entre 1 e 14 anos de idade, foram diagnosticados com a Aids em Mato Grosso. A maioria está na faixa etária de 1 a 4 anos, com 30 casos – 16 do sexo masculino e 14 do sexo feminino.

Ideia errada sobre doença e ‘‘liberdade sexual’’

A jornalista Kátia Damasceno, 48 anos, é soro positiva há vinte anos. Após tornar-se paciente da doença, decidiu trabalhar em grupos de apoio a outros pacientes em Mato Grosso; hoje ela trabalha com palestras em escolas para o público jovem e o que a mais assusta é a falta de senso do perigo sobre Aids entre aqueles que estão iniciando a vida sexual. Porém, o comportamento não advém da falta de informação sobre a doença, para ela, é mais querer viver o risco pela experiência do prazer.

“Você pode achar que estou exagerando, mas não estou. Eu já ouvi pessoas falarem que vão fazer sem camisinha e depois tomar o coquetel [mistura de medicamento de tratamento da Aids]. Outro dizem que não se protegem na hora transar, mas se aparece uma menina bonita dizem: ‘com essa eu transo até sem camisinha’. A doença está banalizada”, comenta.

Com linguagem despojada, Kátia tenta falar a língua dos jovens para conscientizar sobre o perigo da doença, e diz que o senso comum, não só entre os jovens, é de que quem vê cara, vê a doença. “Posso usar a mim mesma como exemplo. Tenho um amigo que conheci pela internet, em site de relacionamento. Quando nos encontramos pela primeira vez e senti que podia falar sobre o assunto, ele me disse que eu estava tirando sarro dele, porque eu não pareço ter a doença. Essa mesma ideia é identificável entre os jovens”.

Entre os idosos, o segundo grupo onde há registro de aumento de incidência da Aids, a palestrante diz que a mudança de comportamento em relação ao sexo, com medicamentos de revigoramento sexual e a sensação de liberdade na terceira idade, podem ser indicados como causa de aumento da doença.

“Há um mito que depois da menopausa a mulher perde o tesão, não é bem assim. Isso está mais ligado ao histórico de vida sexual dela do que à mudança no organismo. E hoje, depois dos 60, com os filhos criados, os idosos se sentem mais livres para curtir os momentos de prazer”, observa.

O médico Ivens Cuiabano acrescenta outra hipótese para o aumento de infecções, que está relacionado ao avanço no tratamento da doença e a falsa ideia de que Aids e gripe estão no mesmo padrão clínico.

“Não se vê mais na televisão personagens como o [cantor] Cazuza ou o [sociólogo] Betinho, que ficaram doentes numa fase ainda de muita pesquisa sobre doença. Hoje, as pessoas doentes têm aparência sadia, pode tomar medicamentos e viver com bastante qualidade de vida, mas isso não muda a manifestação da doença. A Aids ainda é perigosa e pode levar à morte”, explica.

Tratamento é encontrado na rede pública

A Secretaria de Estado de Saúde (SES) informa que o tratamento para Aids é oferecido por meio de Serviços de Assistência Especializada (SAE) em treze cidades em Mato Grosso – Alta Floresta, Barra do Garças, Cuiabá, Várzea Grande, Cáceres, Diamantino, Juara, Juína, Confresa, Rondonópolis, Sinop, Sorriso, Tangará da Serra – além do  Hospital Júlio Müller e Centro Estadual de Referência de Média e Alta Complexidade (Cermac), ambos na capital.  Essas unidades funcionam com medicamentos disponibilizados pelo Ministério da Saúde através das Farmácias de Alto Custo. 

Tomar coquetel não é como controlar febre, diz ativista

Márcio, de 34 anos, vive com o soro positivo há seis anos e diz que não teve nesse período confrontamento com a família e amigos por causa da doença. “Minha família é maravilhosa, meus amigos são maravilhosos e converso com eles numa boa sobre a soropositividade. Eles procuram saber como é a minha vida, se é normal. Sim, é uma vida normal – tenho emprego, tenho um parceiro fixo, moro com meus pais, tenho amigos, vou para a academia de ginástica”.

No entanto, ele alerta para outro fator que passou a fazer parte de sua rotina, após a contração do vírus, e que, em seu caso, não é tão forte quanto de outros colegas. Os efeitos colaterais do coquetel de tratamento da Aids são intensos e podem levar a uma mudança total de vida.

“O meu organismo não teve reação muito forte com os remédios do coquetel. Mas tenho amigo que sofreu surto neurológico de sair correndo pela rua. Era uma pessoa superequilibrada, com concurso público, tinha carro, casa e teve que largar tudo para morar com a família por causa dos surtos”, conta.

E continua: “As pessoas precisam entender que não é uma doença simples, você tem qualidade vida, mas você sofrerá efeitos. Tomar coquetel não é tomar remédio para febre, que você consegue controlar. Os efeitos vão depender de cada organismo, uns reagirão com forte impacto e outros, como no meu caso, não. Mas isso não depende exclusivamente de medicamento”, enfatiza.

Márcio diz que insônia e pesadelos, por causa da mudança psicológica após a descoberta da doença, são elementos que podem acompanhar a vida de um paciente soro positivo. “Você passa a noite se perguntando como seus pais vão reagir, como seus amigos vão reagir, pois não é um doença socialmente aceita. Ainda há muita estigma. Eu sinto entre meus amigos que faço uma ação de quebra de paradigma. As pessoas precisam pensar nisso antes de ter relação sem proteção”.

Ativista de um grupo LGBT, Márcio diz que o preconceito é maior entre os homoafetivos do que entre heterossexuais. Ele diz que a doença usada como forma de engrossar a margem de exclusão social. “Já vi muitos casos de gays dizerem sobre outros quando veem saindo com alguém: ‘Olha lá, já vai distribuir o vírus’. Isso é usado para aumentar ainda mais a exclusão social”.

Integrante do grupo de apoio “Jovens Positivos, Cidadãos Positivos”, Márcio aconselha o comportamento de proteção como método de prevenção da Aids. “A camisinha é a forma mais segura de preservar, portanto, use camisinha. Procure fazer o teste rápido o quanto antes se você fez sexo desprotegido, porque quanto mais cedo for identificado, melhor qualidade de vida.”

 “Não se vê mais na televisão personagens como o [cantor] Cazuza ou o [sociólogo] Betinho, que ficaram doentes numa fase ainda de muita pesquisa sobre doença. Hoje, as pessoas doentes têm aparência sadia, pode tomar medicamentos e viver com bastante qualidade de vida, mas isso não muda a manifestação da doença. A Aids ainda é perigosa e pode levar à morte”, explica.

Reinaldo Fernandes

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