Circuito Entrevista

“A Lei Maria da Penha não inibe as pessoas de praticarem o crime”

Foto Ahmad Jarrah

Por Cintia Borges/Josiane Dalmagro 

Primeira promotora do país a utilizar a Lei Maria da Penha, a promotora de Justiça Lindinalva Rodrigues Dalla Costa, titular da 15ª Promotoria Criminal, Especializada no Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher em Cuiabá, afirma que apenas a aplicação de lei não inibi a violência doméstica. “É preciso projetos”.

A Lei 11.340 de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, completou 10 anos no último dia 7 agosto. A Lei trouxe a tona crimes realizados no âmbito familiar e doméstico por cônjuges e ex-companheiros que, antes, eram tidos como problema particular. 

“Em briga de marido e mulher não se mete a colher”, diz o ditado popular. De acordo com a promotora, nesses 10 anos de Lei Maria da Penha a aplicabilidade da lei colocou o ditado a baixo. “Hoje, a violência doméstica é um crime que todo mundo mete a colher. Todo mundo se envolve”, declara.

Para a promotora é necessário projetos para que a cultura machista seja combatida, e assim, o homem não veja a mulher como posse. Nós não vamos conseguir combater e enfrentar a violência doméstica apenas a golpes de leis, apenas prendendo os homens. As penas são baixíssimas para a maioria dos casos, a não ser em caso de feminicídio, que ele vai ficar muito tempo preso. Precisamos de projetos”.

A mulher, contudo, ainda enfrenta problemas para buscar seu direito nas delegacias. Há falta de efetivo e letargia nos processos.

Confira entrevista na íntegra

Circuito Mato Grosso: Nesses 10 anos da Lei Maria da Penha, qual o balanço que a promotora faz da aplicação em Mato Grosso?

Lindinalva Rodrigues: Eu estou no Ministério Público há 10 anos. Eu comecei a atuar desde o primeiro dia em que a lei Maria da Penha entrou em vigor, fui a primeira promotora a aplicar a Lei Maria da Penha. Apliquei diversas CPIs, e atuei na CPMI da Violência Doméstica. Então, eu posso dizer que caminhamos e evoluímos muito nesse período de 10 anos. 

Posso dizer que o maior avanço da Lei Maria da Penha nesses 10 anos foi ter dado visibilidade para a violência de gênero no Brasil. Se na época da Lei 9099 que era a lei do Juizado Especial, esses crimes eram tidos como crimes privados, que se resolviam dentro de casa, por agentes públicos que olhavam a mulher, mas não as viam. 
Definitivamente, hoje, a violência doméstica é um crime que todo mundo mete a colher. Todo mundo se envolve. Vemos até pela quantidade de palestras que se tem no Brasil, e nós viajamos o Brasil todo para fazer isso, e ver a mobilização dos colegas que atuam na área em todo o Brasil. Vemos que nunca se debateu tanto esse assunto, que antes era um tabu que é a violência doméstica.

Mas assim como o código penal, que existe desde 1940 ele proíbe mata uma pessoa, e mesmo assim as pessoas continuam matando, a Lei Maria da Penha não vai inibir as pessoas de continuar praticando a violência doméstica.

Mesmo por que ela existe a apenas uma década. E uma década, no ordenamento jurídico é um período pequeno para se mudar uma concepção de gênero que está arraigada na sociedade.

Isso tem muito haver com o machismo, e uma educação machista de uma população de uma população latino-americana que tem nas suas entranhas a concepção da mulher submissa, da mulher objeto.

No Brasil, são duas mulheres assassinadas por dia em situação de violência doméstica. O Brasil ainda é o 5º pais onde mais se mata mulheres em situação de violência doméstica no mundo. 

Contudo, Cuiabá, Mato Grosso, nesses 10 anos tem muito para comemorar por que nós entramos em agosto como o primeiro ano sem nenhum feminicídio, ou seja, nenhuma morte de mulheres em situação de violência doméstica na nossa capital.

Isso é um recorde. Nós estamos à frente de cidades do interior onde se mata mais por violência doméstica do que a nossa Capital. Eu acredito que isso se deve ao tratamento rigoroso que damos há uma década aos casos de violência doméstica.

C.M.T.: Mesmo sem nenhum caso de morte, tivemos alguns escândalos graves em relação a violência doméstica em Cuiabá.

L.R.: Essas mulheres mostraram sua cara. Elas foram vítimas que não tiveram vergonha de irem para mídia e se expor. E dessa forma, quando elas se expõem, elas mostram que não são só pessoas humildes que sofrem violência doméstica, e também incentivam outras pessoas a fazerem suas denuncias. 

Os casos de violência doméstica não tem segredo de justiça. É diferente dos crimes sexuais. O segredo de justiça, na violência doméstica é muito raro, e tem que ser decretado especificamente pelo juiz, a pedido e para salvaguardar o interesse da vítima, e nunca do agressor.

Por isso que toda vez que a gente abre o noticiário a gente vê todos esses casos de violência doméstica. Se fosse o caso de segredo de justiça, nós não teríamos evidentemente toda essa exposição na mídia de todo o Brasil.

C.M.T.:  Promotora, há Projetos de Leis que pedem algumas alterações na Lei. Qual a sua avaliação sobre essas alterações?

L.R.: Eu entendo que nessa década é muito cedo para se mudar uma lei. Como eu auxiliei a CPI da Violência Doméstica, eu andei todo país para ver a aplicação da Lei. O que pude contatar juntamente com as senadoras e deputadas, é que a Lei Maria da Penha no Brasil é aplicada somente nas Capitais, e mesmo assim de forma precária. 

Porque não há estrutura. Não há juízes suficientes. Onde há juízes, não há servidores. Quando há juízes e servidores não há oficiais de justiça para cumprir as decisões. Não há delegacias de polícia. As delegacias de polícia encontradas atuam de forma precária, até dando senha para a mulher ser atendida em determinado dia e hora. Falta papel nas delegacias.

As delegacias da mulher ainda não são uma prioridade para o executivo. E não só em Mato Grosso, no Brasil. E estou falando de Capitais, no interior a situação ainda é mais precária, por que são poucas as delegacias especializadas de violência doméstica no interior.

C.M.T.: Ainda acontece de mulheres chegarem a delegacias e não serem tratadas da maneira que deveriam por falta de estrutura e policiamento?

L.R.: Sim. Nós temos o disque 180 que tem como recorde as denuncias do mau atendimento nas delegacias e da falta de preparo da polícia no tratamento dessas vítimas. Muitas vezes eles ainda querem devolver o problema para se resolver em casa, dizendo para a mulher pensar bem, por que o cidadão é pai dos filhos dela, e tentar minimizar uma situação fazendo juízo de valor que não cabe a ele naquele momento.

Mas nós também temos casos de trabalhos valorosos da polícia militar e civil fazendo um bom trabalho com os poucos recursos que tem para salvar a vida dessas vítimas

CMT: E, especificamente, sobre o Projeto de Lei 07/2016 de autoria do deputado federal Sergio Vidigal (PDT), que tramita na Câmara dos Deputados. Quais são as perdas?

L.R.: Ele é um Projeto de Lei muito bom, com um artigo muito ruim. O PL visa estruturar as delegacias da mulher, dar plantão 24 h nas delegacias da mulher, e isso seria muito bom se o Brasil pudesse ser modificado a toque de leis. Implementa a lei e pronto. Mas nós sabemos que as coisas não são assim.

É preciso  muitos delegados para conseguirem atender uma delegacia 24h especializada, é preciso de muita estrutura para que isso seja colocado em prática, para não ser um engodo. Mas o projeto por si só, se fosse factível e se eles conseguirem dar estrutura e tornar real seria um projeto bom.

O que a magistratura e o ministério público, a defensoria e o movimento de mulheres são contra é a questão de um artigo que é o 12B que está dentro desse projeto. Que é o que dá o direito aos delegados de polícia de conceder diretamente as medidas protetivas para as mulheres vitimas de violência doméstica, sem passar pelo juiz.

Quando falamos de uma Lei no Brasil nós estaremos dando uma discricionariedade, ou seja o poder de uma delgado de polícia que não tem inamovibilidades. Por exemplo, o juiz e o promotor ele é inamovível , a gente compra as nossas brigas contra o rico, contra o pobre, e mesmo não gostando da decisão tem que encarar. A polícia civil não tem isso. Então, imagine no interior, o delegado dando uma medida protetiva contra alguém poderoso e parente de um alguém poderoso. Que garantia ele teria de amanhecer lá novamente? Seria muita pressão em cima dessa autoridade policial, que não teve pelo concurso público, essa competência jurisdicional. Que é um poder de decisão. 

Esse seria um poder de decisão jurídica. Imagine a quantia de decisões que os advogados iriam entrar contra essa decisão dada por um delegado de polícia, quando fosse favorável para ele seria uma beleza, quando fosse contra ia chover manifestações contrarias dizendo que o deligado não teria poder de decidir, que aquilo era uma coisa do juiz. E a mulher iria ficar com um papel na mão, que não valeria para nada, em uma delegacia sem estrutura. 

E volto a dizer que estou falando do Brasil. Do interior do Amapá, Amazonas, onde não se tem dinheiro nem para comprar o papel. Onde não se tem quem possa cumprir e intimar o agressor dessa medida de proteção. 

C.M.T.: Então, essa mudança não deveria ocorrer?

L.R.: A primeira mudança não pode ser uma mudança de faz de conta. Da mulher achar que “nossa, eu vou sair da delegacia com minha medida protetiva na mão”. E isso não ser algo real, algo dado por um juiz, e que possamos garantir para ela como um direito. 

A magistratura já se manifestou contra essa medida. O Ministério Público não tem esse poder de decisão, não muda nada. Eu, como promotora, não dou medida protetiva, e vou continuar não dando. Só que para salvaguardar o interesse da vítima e por que o judiciário já disse que não aceita e disse que vai entrar com as ações diretas de inconstitucionalidade quanto ao projeto.

C.M.T.: A Lei Maria da Penha também é aplicada nos casos de violência doméstica contra transexuais?

L.R.: Sim. Isso é uma vitória. Para o Ministério Público isso já está consolidado, tanto para os travestis quanto as transexuais são contempladas pela Lei Maria da Penha. Basta que elas façam as denúncias, independente de cirurgia de transexualização.

C.M.T: Há casos em Mato Grosso?

L.R.: Tivemos alguns casos com a doutora Ana Cristina que já concedeu. Especialmente na vara em que atuo, ainda não tive nenhum caso.

C.M.T.: Há ainda dúvidas em relação a aplicação da Lei Mari da Penha.  A população ainda confunde violência contra mulher e a violência doméstica. Como diferenciar?

L.R.: A violência doméstica é praticada contra a mulher no âmbito doméstico e familiar com pessoas com quem ela tenha ou tenha tido qualquer tipo de relação de afeto. Ou seja, um namorado, companheiro, ex-companheiro… Alguém que, na relação, se sinta hierarquicamente superior a ela, ou tenha uma relação de posse em relação a ela. 

Se são, por exemplo, duas irmãs que brigam, e tem uma relação familiar, é uma violência domestica, mas não entra na Maria da Penha por que não existe hierarquia entre elas, não há uma relação de poder.

C.M.T.: E no caso de relação homossexual?

L.R.: O caso de homossexuais masculino a lei não alcança, apenas homossexuais femininos. Eu já tive casos e há uma relação hierárquica. No caso, uma delas exerce uma relação de poder em relação a outra. Ela apresenta um ciúme obsessivo, reproduz alguns comportamentos, como guardar faca em baixo da cama. Apresentam o mesmo comportamento do homem abusivo e agressivo. Uma sempre está subordinada aos comandos da outra e tem essa relação mais frágil. 

C.M.T.: Por fim, o que podemos apontar para a educação do agressor e a educação dos homens na nossa sociedade?

L.R.: Nós precisamos de politicas públicas para garantir a prevenção, a educação e a reeducação dos agressores. Nós não vamos conseguir combater e enfrentar a violência doméstica apenas a golpes de leis, apenas prendendo os homens. As penas são baixíssimas para a maioria dos casos, a não ser em caso de feminicídio que ele vai ficar muito tempo preso.

Nós não podemos continuar falando de violência doméstica e continuar agindo apenas em Cuiabá. Precisamos de projetos estaduais. É preciso que haja um projeto preventivo para que esses homens não cometam esse tipo de crime. E principalmente, um projeto para que os agressores que tenham problemas com álcool e drogas sejam tratados efetivamente. É muito triste nós vermos essas pessoas padecendo com esses vícios, pedirem tratamento, e você não ter para onde encaminhar.

Nós temos alguns projetos como o “Lá em casa quem manda é o respeito”, feito para agressores domésticos. Mas é necessário que eles vão além de Cuiabá. 

Estamos lançando nos próximos meses o projeto “Homens que agradam, não agridem”, especialmente para os homens. Para dividirem as tarefas domésticas, para não serem agressivos, não serem machistas.

 

Cintia Borges

About Author