Como qualquer cidadão de uma classe média reprimida e esmagada, vivente do lado de baixo da linha do equador, volta e meia o trem aperta. O orçamento doméstico fica mais reduzido, as contas não param de chegar. Lembro bem de Flor indagando o por que eu comprava tantos filmes quando morávamos no Rio, se não via a nenhum:
– É porque não sei se amanhã vou ter dinheiro.
Quem vive isso sabe. Tem épocas que se troca de carro. Tem épocas que você troca o carro pelas mensalidades escolares. Tem horas que você paga num mês uma conta, no outro, a outra, num revezamento contístico que dura até a pipa levantar de novo. Mas o mundo mudou! Atrasar uma conta, hoje, nesse mundo onde capital gera capital, é um pecado mortal. Não deverei mais entrar no paraíso. Pelo menos, o povo do telemarketing me lembra isso em 30 em 30 minutos. Até quem comete um homicídio é menos agredido do que quem está devendo uma conta. Atendentes de telemarketing são verdadeiros torturadores. Ligam, são grossos. E ligam mesmo. Como vou arranjar dinheiro em 50 minutos para pagar a conta? Pior, a petulância, a falta de compreensão, a falta de ser, ser humano. Protegidas pela linha de cabo ótico dos telefones, elas elevam a arrogância até o último ponto.
– Donamaria, boa tarde.
– Gostaria de falar com João Carlos.
– É ele.
– Aqui é do Grupo VLS, representante do Santander, o senhor tem um débito que está aberto há mais de um ano.
– Deve haver algum engano. Nunca tive conta no Santander.
– Como engano, meu senhor? Você não se chama João Carlos?
– Sim. Mas qual João Carlos você está se referindo?
– Você. João Carlos Manteufel.
– Nãoo… eu sou João Carlos Manteufel J….
– Então foi o que disse. Quero saber quando poderemos receber.
– Minha senhora, já lhe disse que nunca tive conta no Santander. Meu nome é Junior…. entendeu????
– Então por que você disse que era João Carlos, hein??? Tá achando que sou o quê???
– Olha……. MEU NOME É JOÃO CARLOS MANTEUFEL JUNIOR! ESSA CONTA DEVE SER DO MEU PAI! QUE FALECEU TEM QUASE UM ANO!
– Então me manda agora o atestado de óbito para eu saber se você não é você.
Desligo o telefone na cara da atendente profundamente abalado. A que ponto chegaram as relações humanas. O telefone toca de novo.
– Alô?
– Não adianta desligar não, enquanto você não pagar, não paro de ligar.
Deixo o telefone fora do gancho. Fico pensando como será que essa pessoa se relaciona com sua família. Se é que alguém acredite nela.