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Os negros e negras, a população afrodescendente, representam, muitas vezes, o elo mais fraco da corrente no acesso a serviços públicos – como saúde, educação, trabalho etc. – e até mesmo a própria qualidade de vida. O Mapa da Violência, levantamento feito pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), apresenta um dado que sublinha a opressão desse contingente de pessoas revelando que 78% das crianças e adolescentes de 0 a 17 anos que foram mortos em Mato Grosso eram negras.
O estudo utiliza dados de 2013. De acordo com a pesquisa, 98 crianças e adolescentes de 0 a 17 anos foram mortas naquele ano em Mato Grosso. Desse total, 77 eram negros, número que representa 78% dos homicídios. Ao considerarmos esses crimes apenas entre os que possuem 16 e 17 anos, a porcentagem é ainda maior: 83% daqueles que perderam a vida em Mato Grosso em razão de homicídios, segundo o Mapa da Violência, eram negros e negras que ainda não chegaram à idade adulta.
Quando o assunto é violência, as mulheres negras também constituem um dos elos fracos dessa corrente. Outro levantamento, dentro do Mapa da Violência, aponta que entre 2006 e 2013 houve aumento de 45% no número de afrodescendentes mortas em Mato Grosso. Quando analisamos a relação de homicídios deste contingente populacional específico a cada grupo de 100 mil habitantes, Mato Grosso ocupa de maneira inglória o 3º lugar entre os Estados brasileiros que mais vitimam as afrodescendentes, com taxa de 5,0.
As mulheres negras também constituem um dos elos fracos dessa corrente
Os números que ratificam a vitimização pela violência, que atinge a população afrodescendente, poderiam ser explicados, em parte, se os negros e negras representassem a grande maioria dos habitantes de Mato Grosso. Mas esse não é o caso. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) eles formam 60% dos que residem no Estado. Informação que, levando em conta apenas o aspecto estatístico, não explica por que apenas 22% dos adolescentes mortos por homicídio eram brancos.
Outro dado do Mapa da Violência que exemplifica essa contradição é a relação entre negros e brancos que foram mortos por armas de fogo. De acordo com o estudo da Flacso, 516 afrodescendentes sofreram homicídio dessa maneira, enquanto o total de brancos foi de 173, ambos a cada grupo de 100 mil habitantes.
“Pobreza tem cor, mas racismo não tem classe social”, diz pesquisador
Existe uma contradição de classe que personifica a maioria negra entre a população pobre, uma vez que o capitalismo potencializa a exploração dessas pessoas. Porém, este é o aspecto material da questão, que não contempla o valor simbólico que ajuda a explicar o porquê de os afrodescendentes não terem acesso a serviços públicos de melhor qualidade e serem considerados “cidadãos de segunda categoria”.
A avaliação é do Dr. em Educação e docente da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Sérgio Pereira dos Santos, que recebeu o Circuito Mato Grosso. Negro, pós-doutorando, ele afirma que as origens desse poder simbólico – que pode ser entendido como algo que não pode ser mensurado em quantidade material e que mesmo assim exerce influência em nossas vidas, como a religião – encontra-se nas mais variadas fontes, como os processos de ocupação dos territórios e obtenção de matéria-prima.
“A criação de ideias era necessária para justificar a exploração e ocupação de territórios. Por isso, havia uma corrente no século XIX que teorizava que os negros possuíam atributos físicos para o trabalho bruto, porém, o conhecimento e a racionalidade eram privilégios apenas dos europeus, ou seja, apenas dos brancos”, disse ele.
Sérgio afirma que, a despeito de possuir um título de doutorado, e continuar os estudos em seu pós-doutoramento, ele mesmo já foi vítima da inferioridade que é atribuída aos afrodescendentes.
“Já me perguntaram três vezes se eu era segurança aqui da universidade. Isso é tão enraizado em certos círculos que, mesmo que as pessoas aparentemente te tratem bem, elas estão apenas tolerando sua presença pois acreditam que você não pode ocupar um lugar de destaque,apenas por ser negro”, pondera.
Sérgio diz ainda que a violência é outra parte importante na vitimização dos negros e negras, sobretudo as das forças de segurança púbica.
“O primeiro quesito levado em conta pela segurança pública é a cor da pele das pessoas. Independente da idoneidade delas. Nos cursos de formação, os policiais contam que ‘negro parado é suspeito, negro correndo é culpado’”.
CMPIR funciona em Cuiabá desde março
Uma demanda antiga daqueles que lutam contra o racismo e o preconceito virou realidade em Cuiabá graças à luta dessas pessoas que sentem o problema na pele e, por causa dela, o preconceito injusto de uma pretensa superioridade racial. O Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (CMPIR) foi oficializado pelo Diário Oficial do dia 02 de março de 2016 e seu presidente, Edevande Pinto de França, recebeu a equipe do Circuito Mato Grosso para explicar as ações do grupo.
“O Conselho nasceu da luta histórica do movimento negro de Cuiabá, e busca a valorização do povo afrodescendente em favor da nossa autoestima. Temos a responsabilidade de discutir e propor políticas públicas que combatam o racismo aqui na capital”, disse ele.
Subordinada à Secretaria Municipal de Assistência Social (SMASDH), o grupo é composto por 32 conselheiros e também possui, entre suas atribuições, a realização de “estudos, debates e pesquisas sobre a realidade da situação da população afrodescendente, com vistas a contribuir para a elaboração de propostas de políticas públicas”.
Pedro Reis de Oliveira, conselheiro do CMPIR, também é presidente do Centro Nacional de Cidadania Negra – Regional Mato Grosso (Ceneg-MT). Ele explica que a “Lei Áurea” – que aboliu a escravatura chancelada formalmente pelo Império – foi um divisor de águas na luta contra a exploração dos afrodescendentes no Brasil. Contudo, Reis afirma que um dos principais itens foi “deixados de lado” após a promulgação da disciplina: “o dia seguinte”, como ele explica.
“O dia 13 de maio de 1888, a assinatura da Lei Áurea, foi um divisor de águas. Mas infelizmente não pensaram no dia 14, o dia seguinte. Negros sem ocupação começaram a perambular pelo País, o que contribuiu para a afirmação de certos preconceitos como a violência e a falta de trabalho. O que ocorreu é que não houve preocupação do Estado com essas pessoas”.
O CMPIR localiza-se na Casa dos Conselhos, que fica na Av. Dom Aquino 184, atrás do Colégio São Gonçalo. O telefone é (65) 3626-3541.
“Sofri racismo ainda na pré-escola”
Inês* é uma das poucas mulheres que encaram o desafio de seguir a carreira de engenharia, área dominada por homens. Negra, ela afirma que o racismo a acompanha desde os seus primeiros passos na educação formal, quando era matriculada na pré-escola. Para manter a discrição, o Circuito Mato Grosso utilizou um nome fictício.
“A primeira vez que eu me lembro de ter passado por uma situação assim foi no jardim I. Uma colega não quis me emprestar lápis de cor ‘porque eu era preta’”.
O assédio dentro das escolas não parou por aí. A jovem, que nasceu e vive com o marido em Cuiabá, afirmou que esse tipo de injúria não era rara nos anos que se seguiram no ensino fundamental. De acordo com ela, alguns colegas de classe gostavam de provocá-la chamando de ‘negrinha’, e que todos ficavam excitados pela possibilidade de agressões físicas que poderiam ocorrer. Mas ela sempre se manteve firme.
“Na quinta série, em vez de me chamar de chata, por exemplo, uma menina vivia provocando, dizendo que eu era ‘negrinha’. A sala toda ficava em polvorosa, gritando para eu bater nela, mas nunca fiz nada. Não queria mais confusão”.
Uma colega não quis me emprestar lápis de cor ‘porque eu era preta’”.
Já adulta, e com um companheiro, as ofensas não pararam – nem mesmo dentro do círculo familiar. Inês conta que um familiar próximo já lhe disse que “tinha cheiro de preto” e que seu “cabelo era ruim” e que deveria andar mais arrumada porque ela “tinha um companheiro branco”.
Hoje, a engenheira afirma que o mais importante nessas situações é manter a calma, “pois certas discussões podem nos prejudicar, em primeiro lugar”. Porém, casos mais graves não devem ficar impunes.
“Temos que manter a cabeça fria, tentar reverter a situação com educação. Mas se a ofensa por muito grave, devemos denunciar sim”.