O direito de expressar afeto em público sem sofrer represália é uma das reivindicações do movimento LGBT (Foto Ahmad Jarrah)
Uma declaração do proprietário do bar Luciu’s do Caju gerou agitação nas redes sociais esta semana. Sendo Cuiabá a terceira capital mais perigosa do Brasil para homossexuais – de acordo com o Relatório Anual de Assassinatos de Homossexuais no Brasil relativo a 2014, do Grupo Gay da Bahia (GGB) – a polêmica traz à margem uma questão: O comércio de Cuiabá discrimina a população LGBT?
Em seu depoimento no facebook Lucius diz: “Respeito o público GLS, mas na minha opinião, eu não sou obrigado a ver ‘cacete com cacete’ (sic) beijando na boca e se acariciando, nem ‘buceta com buceta’ fazendo o mesmo. Homem com homem, mulher com mulher beijando na boca só se eu não vir. Chamo atenção sempre com respeito. Essa é minha opinião e opinião não é crime”.
O texto é uma resposta a um relato publicado por Julia Aratani na página oficial do estabelecimento. Segundo a cliente, suas amigas foram repreendidas pelo dono do bar por estarem “trocando carinhos de forma como qualquer casal faz quando está numa mesa de bar ou restaurante”. Lucius teria dito de forma ríspida, que as duas não poderiam fazer “aquilo” no local, enquanto, contraditoriamente, um casal hétero ao lado também trocava carícias.
Soa irônico que um bar massivamente frequentado por um público LGBT, seja considerado homofóbico. Como Lucius relata na mesma publicação, o local tem 20 anos de existência – e no decorrer desse tempo, a maioria dos frequentadores são homossexuais. Talvez pela sua localização, que por muitos anos foi a poucos metros da boate LGBT Zum Zum, ou pela estética inusitada do local e do próprio dono, as aparências apontavam para o respeito à diversidade.
No entanto, com a resposta de Lucius compartilhada várias vezes pelo facebook surgiram outros relatos de discriminação praticados pelo próprio dono e funcionários. O caso de Theodora Charbel é um deles. “Já frequentei o bar quando era na frente do Caminito, onde abracei uma garota e fui convidada a me retirar. Algum tempo depois, quando o bar mudou de localização, tornei a tentar frequentar o espaço porque temos sempre a esperança de que as coisas evoluam. Segurei a mão da minha namorada e demos um selinho, um garçom me chamou atenção e disse que não podia fazer isso naquele lugar”.
Apesar de toda a repercussão, a reação que predomina não é surpresa, mas irritação. Para a estudante de medicina, Keila Laís, as denúncias não são novidade. Ela explica que o problema específico não é a presença de homossexuais no local. “O problema é a demonstração da homoafetividade, aquela coisa do: Ok ser gay, mas eu não sou obrigado a ver você beijar outra mulher, isso já é demais. E como grande parte do público LGBT dali é solteiro, talvez eles não tenham sido abordados dessa maneira”.
Beijaço como protesto
Como forma de repúdio à postura de Lucius do Caju, o Coletivo LGBT Manicongo organizou uma manifestação em frente ao bar, para sexta-feira (18). Chamado de “Beijaço”, o protesto conta com cartazes, discursos e, claro, um momento de beijo coletivo. Uma das questões sensíveis à população LGBT é justamente a expressão do afeto publicamente, como Keila explicou, no Brasil ainda há intolerância e uma reação diferente entre o carinho entre héteros e homossexuais. Por conta disso, o beijo se tornou para além de um gesto de carinho, um símbolo de luta e apoio à causa, como o selinho dos famosos Bruno Gagliasso e João Vicente, Daniela Mercury e Malu Verçosa, Caetano Veloso e Nando Reis, entre outros. Download and play the best slots here – https://todoslots.co/
Para Itallon Lourenço, integrante no Manicongo, “o beijaço é uma forma de resistência, porque historicamente nos foram negados espaços de convívio social, nos sobrando apenas banheiros e subúrbios. O protesto não é somente pelo direito de beijar e amar quem se quiser no Luciu’s. É pelo direito de amar quem se quiser em qualquer bar de Cuiabá, porque o Lucius não é o único que nos expulsa dos estabelecimentos por preconceito”.
Outra questão trazida à tona pela polêmica, como já disse Itallon, é a regularidade desse tipo de discriminação nos estabelecimentos cuiabanos. O secretário de comunicação da ONG Livre Mente e membro da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Clóvis Arantes, endossa a declaração do ativista. “Nós já tivemos, em Cuiabá, duas manifestações nesses últimos anos. A primeira foi no Chorinho, quando houve um grande beijaço. A outra foi num bar atrás da City Lar. Então, estes são alguns casos, mas nós já tivemos vários casos de discriminação em ambientes comerciais na cidade, isso acontece com muita frequência”.
Práticas discriminatórias devido à orientação sexual e identidade de gênero são proibidas por lei em Cuiabá. Lei criada pelo vereador Lúdio Cabral (PT) e sancionada pelo prefeito Chico Galindo (PTB), em 2012. Portanto, se isto é, de fato, uma rotina no comércio cuiabano, por que a lei não é aplicada?
Clóvis explica alguns dos possíveis motivos: “Primeiro, porque as pessoas e os comerciantes não a colocam em prática. E segundo, a gente tem que fazer essas coisas acontecerem judicialmente como, por exemplo, quando eu sofro uma violência na rua e eu não denuncio. Se você não denuncia formalmente isso não se torna estatística, aí não tem como o poder público, a polícia, tomar providências se não existe a denúncia de fato. Qual é a denuncia de fato? Além de você denunciar nas mídias, você tem que registrar o boletim de ocorrência”.
Mea Culpa
Um dia após a publicação do comentário e todas as acusações, o ator, homossexual e amigo pessoal de Lucius, André D’Lucca, gravou um vídeo-retratação com o dono do bar. Durante os dois minutos de vídeo o comerciante fala pouco, pede desculpas para aqueles que se sentiram ofendidos e explica que não há discriminação em seu estabelecimento, para ele, todos os clientes são iguais.
Ao invés de reconciliação, o pedido de desculpas gerou ainda mais força e visibilidade para a questão e, consequentemente, para o protesto desta sexta-feira (18). “Não dá para ignorar severas denúncias com um vídeo em que o Lucius mal fala alguma coisa. A partir do momento em que o movimento LGBT se organizou, ele sentiu na pele o que nós sentimos no bar dele: constrangimento e exclusão. Como ele mesmo disse, são 20 anos de bar, por que nunca conversou com seus clientes? Por que nunca se informou sobre o assunto?”, comenta a cantora Theodora Charbel.
Para Clóvis o problema não se restringe ao público LGBT e ao Luciu’s do Caju, mas é geral, de responsabilidade de todos. “O importante é não frequentar mais esses lugares e denunciar, fazer com que as pessoas saibam que não devem frequentar. E não só as pessoas LGBT, mas a sociedade em geral. Eu não posso frequentar um espaço social que maltrata as pessoas, que trata as pessoas de acordo com sua aparência ou condição financeira, então, eu tenho que denunciar para que as pessoas não frequentem mais esses espaços”.
Serviço
Em caso de qualquer discriminação sofrida por conta de orientação sexual e/ou identidade de gênero chame imediatamente a polícia pelo 190 e faça o boletim de ocorrência. A lei 5543, de 2012, proíbe esse tipo de discriminação e pune com advertência e/ou multa o estabelecimento que cometa este tipo de violência.
RETRATAÇÃO
Após a veiculação dessa matéria o ator André D’Lucca procurou o jornal para prestar esclarecimento quanto a sua sexualidade. O Circuito Mato Grosso pede desculpas ao ator por quaisquer mal entendidos.
Segue nota do ator sobre o fato:
“O grande problema da nossa sociedade é rotular as pessoas. Eu não aceito o rótulo de homossexual na minha cara, porque eu não gosto só de homem. Eu nunca disse que eu sou heterossexual, por que eu não gosto só de mulher, muito menos me encaixo no rótulo de bissexual, pois eu não gosto só de homem e de mulher. E se eu me apaixonar por uma travesti, por exemplo? E se eu me apaixonar por uma trans? Eu não vou fechar porta nenhuma na minha vida com rótulo, porque a sociedade quer me rotular. Você é gay, você é bissexual, você é hétero. Eu não me encaixo em nenhum desses rótulos. Eu gosto de pessoas, não do sexo ou da sexualidade delas, ponto final”.