Cidades

OSS persiste no modo errado de gerir em Mato Grosso

Principal serviço público disponível, mais importante até mesmo do que a educação, a saúde no Brasil passa por momento delicado. Dados da Câmara dos Deputados apontam que o Sistema Único de Saúde, criado para universalizar o atendimento ao povo brasileiro, e referência no mundo, possui cobertura de 90% apenas em duas unidades federativas: Piauí e Paraíba. Em Mato Grosso, o modelo adotado para servir a população tornou-se a principal dor de cabeça dos poderes constituídos em razão das Organizações Sociais de Saúde (OSS’s).

Criada pelo então secretário de saúde, Pedro Henry, na gestão Silval Barbosa (PMDB), em 2011, as OSS’s sempre foram percebidas com desconfiança pela população e pelos prefeitos das cidades mato-grossenses, que se queixam de que o Governo do Estado repassa subsídios para as empresas que gerem as unidades assistenciais, numa espécie de serviço terceirizado, mas que não transferem os recursos para os gestores utilizarem sobretudo na atenção básica, responsabilidade dos municípios.

Segundo dados do próprio governo, a Secretaria de Estado de Saúde transferiu R$ 131,6 milhões aos municípios mato-grossenses referentes aos repasses feitos fundo a fundo para os programas de saúde até outubro de 2015. Deste montante, R$ 30,9 milhões – que correspondem a aproximadamente 23% do total – são referentes a verbas em atraso de 2014, último ano do governo Silval Barbosa.

Para se ter uma ideia, uma das três unidades públicas de assistência à saúde que ainda são geridas por empresas em Mato Grosso (ver matéria abaixo), o Hospital Regional de Cáceres (222 km de Cuiabá), tinha repasse de R$ 2 milhões antes da entrada da Associação Congregação Santa Catarina, empresa que faz seu gerenciamento. Após a terceirização, a transferência subiu para R$ 37 milhões, segundo o Conselho Estadual de Saúde de Mato Grosso (CES-MT).

CPI está em fase final

Apresentada em requerimento no dia 12 de março de 2015, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi instaurada na Assembleia Legislativa de Mato Grosso (AL-MT) com o intuito de investigar os atrasos nos repasses aos municípios, além de discutir a forma como as OSS’s vem gerindo a saúde no Estado. 

Com prazo até abril de 2016 para apresentar os resultados, entretanto, o deputado estadual e presidente da CPI, Leonardo Albuquerque (PDT), afirmou ao Circuito Mato Grosso que deve concluir os trabalhos até março. Para ele, as investigações devem continuar nas outras esferas de poder.

“Fico feliz em afirmar que vamos concluir os trabalhos antes do prazo previsto. Mas a sociedade deve continuar investigando, além dos outros poderes. Os culpados devem pagar a dívida com a sociedade”, disse.

A comissão é composta ainda pelos parlamentares José Domingos Fraga (PSD), que será o relator da comissão, além dos deputados Sebastião Rezende (PR), Emanuel Pinheiro (PR) e Pedro Satélite (PSD). Uma das consequências da má prestação de saúde no Estado é a judicialização pelo atendimento, que também possui caráter excludente, uma vez que nem todos possuem acesso e recursos para acionarem a justiça. 

Dados da AL-MT apontam que, entre maio de 2010 e abril de 2015, a Secretaria de Estado de Saúde (SES) investiu mais de meio bilhão, por meio de decisão judicial, em atendimentos especializados ou aquisição de medicamentos.

Leonardo Albuquerque, entretanto, sublinha que alguns apontamentos que não puderam ser corretamente investigados – citando a necessidade de quebra de sigilo bancário – precisam de mais aprofundamento do Ministério Público Estadual (MPE-MT), que na sua opinião, deve acionar a justiça, num momento em que a área “precisa se recuperar”, segundo ele.

“Questões como quebra de sigilo bancário, que não foram conseguidas pela CPI, devem ser encaminhadas ao Ministério Público para que se continue investigando os apontamentos. Estamos num momento de recuperação da saúde”.

Para conselheiro, “OSS é fracasso”

“Organização Social de Saúde é uma forma de modelo de exploração capitalista, e sua prioridade não é salvar vidas”, ratifica o Conselheiro Estadual de Saúde Orlando Francisco, que recebeu a equipe do Circuito para discutir as implicações da OSS na gestão estadual da saúde.

O Conselho Estadual de Saúde de Mato Grosso (CES/MT) é um órgão colegiado, de decisão superior, de caráter permanente e deliberativo. A grosso modo, toda decisão que impacte na assistência à saúde no Estado deve passar por ele, que é composto por representantes do seguimento de usuários (50%), profissionais da saúde (25%) e governo e prestadores de serviços em saúde privados, conveniados, ou sem fins lucrativos (25%). 

Segundo Orlando, quando você utilizar um recurso a partir de uma inscrição estadual, caso das OSS’s, a empresa irá prestar um serviço que, apesar de utilidade pública, “prioriza os ganhos, os lucros e o excedente do lucro”.

“Quem abre uma empresa quer ganhar dinheiro. As OSS’s, por serem instituições privadas, não são diferentes. Se uma UPA recebe R$ 100 mil para atender 300 pacientes, a OSS vai ganhar os mesmos R$ 100 mil, mas prestará serviço para apenas 30 pessoas”, pondera.

Ele diz ainda que essa forma de gestão vai contra o controle social, uma das diretrizes do SUS, e que em Mato Grosso, para cada real investido nos hospitais, prontos-socorros e unidades filantrópicas conveniadas ao Estado, gastou-se, pelo menos, três vezes mais com as OSS’s.

“É uma lógica privatizante de um serviço essencial à população, que vai contra o controle social da saúde pública no Brasil. Comprovamos que a cada R$ 1 colocado no público, colocava-se de R$ 3 e a R$ 4 nas OSS’s”.

OSS’s sob intervenção do Estado

Das sete organizações sociais de saúde que controlam os hospitais regionais do Estado, apenas três encontram-se sob gestão dessas empresas. Cinco delas já sofreram intervenção do governo, seja por prestação de serviços de má qualidades, até denúncias de esquemas envolvendo médicos e planos de saúde, que fraudavam informações enviadas ao SUS para lucrarem com atendimentos cobertos pelas operadoras, denunciado em maio de 2015 na edição 535 do Circuito.

Com exceção do Hospital Regional de Cáceres, controlado pela Associação Congregação de Santa Catarina – investigado pelo Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO) do MPE – e do Hospital Regional de Rondonópolis (216 km de Cuiabá), que tem a gestão sob responsabilidade da São Camilo Saúde – que sofre processo administrativo do Estado de Mato Grosso por negligência na morte de um paciente -, todos as outras OSS’s estão, ou já estiveram, sob intervenção do governo do Estado.

Os Hospitais de Alta Floresta e Colíder (812 km e 656 km da capital, respectivamente), que eram administrados pelo Instituto Pernambucano de Assistência e Saúde (IPAS), além do Hospital Metropolitano de Várzea Grande (vizinha a Cuiabá) e a Farmácia de Alto Custo, já sofreram intervenção do Estado. O Hospital Regional de Sorriso (418 km da capital), que era gerido pelo Instituto Nacional de Desenvolvimento Social e Humano (UNDSH) também sofre ingerência do poder público. 

O Hospital Regional de Sinop, controlado pela Fundação de Saúde Comunitária de Sinop, já esteve sobre interferência do Governo, mas voltou à administração privada em fevereiro de 2016.

“Durmo na cadeira porque não consigo deitar na cama”

A tarde ensolarada e quente de Várzea Grande, a segunda cidade mais populosa de Mato Grosso, apresentava um desafio e tanto para um dia de fechamento da edição impressa do semanário Circuito Mato Grosso. Com uma pauta complexa em mãos – a saúde debilitada do Estado – e precisando conhecer a rotina de pessoas que possuem a última esperança num serviço público precarizado e entregue a interesses pessoais de políticos e empresários, seguimos em direção ao Hospital Metropolitano de Várzea Grande.

No caminho até o município, o ar-condicionado do automóvel da empresa funcionava como uma espécie de antessala de uma clínica particular, onde o conforto do ambiente dificilmente é capaz de baixar a tensão do que encontramos a seguir, na sala do médico, nesse caso, a unidade de saúde da região metropolitana de Cuiabá.

Na entrada do hospital, percebemos um senhor, de calça jeans e sapato, e uma camisa branca com alguns botões abertos, segurando um envelope com radiografias e documentos das várias consultas e encaminhamentos médicos pelos quais  já passou.

Egídio de Souza, de 45 anos, casado e pai de três filhos, tinha no rosto a expressão da dor física de um acidente ocorrido em 2010. Mais marcante ainda do que isso, o semblante de revolta e angústia denunciava a recorrente ineficiência da saúde pública mato-grossense, que vem negando a necessidade de pelo menos três cirurgias (uma em cada ombro e outra na coluna), diagnosticas pelo médico ainda em 2010.

“Trabalhava no campo e machuquei o joelho no trator. O patrão não quis saber, e mandou eu montar numa égua para juntar o gado. Não consegui domá-la por causa do joelho, então acabei caindo e machucando os ombros e a coluna. Não consigo nem deitar na cama, por isso durmo na cadeira de fios”, conta ele.

Egídio, que é de Nova Lacerda (556 km de Cuiabá), conta que acordou às 03h:00 para ser atendido no Hospital Metropolitano de Várzea Grande. Chegando por volta das 08h:00, no entanto, ele foi atendido apenas às 14h:00 e lamenta pelo fato de estar na fila para cirurgias já há quase 6 anos, sem perspectiva de quando será atendido. Aposentado por invalidez, ele diz ainda que não recebeu nenhum auxílio do ex-patrão.

“Nunca me deu até hoje um único comprimido. Entrei na justiça, mas a advogada nem fala comigo mais, sumiu”.

Com mais essa história de vida singular contada por meio do jornalismo, uma gota de fé no oceano de injustiças desse mundo, nos despedimos de Egídio, que indaga se o jornal impresso chegaria a sua cidade, para que ele pudesse mostrar aos seus parentes e amigos.        

Diego Fredericci

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