Cidades

Aterro sanitário: a ‘Ilha das Flores’ na capital mato-grossense

A referência ao clássico curta metragem do cineasta Jorge Furtado, Ilha das Flores, vem da visão de um local fétido e insalubre, onde lixo – de toda natureza – e chorume se misturam ao cenário repleto de moscas, urubus, animais e pessoas. Assim é o Aterro Sanitário de Cuiabá.

Entre um caminhão de lixo e outro que chega, a todo momento, descarregando o resto, o desprezado por outrem, um se destaca entre os catadores, que em meio a sua rotina de buscas saem em disparado, para o valorado veículo.

O que há lá dentro? Comida! Não aquela que se costuma jogar no cesto de lixo da cozinha de casa. É o caminhão que traz o lixo de um supermercado da capital. Nele, refrigerantes, iogurtes, mortadelas, chocolates, bebidas e até carnes lacradas, desprezadas pelos supermercadistas, são objeto de disputa e desejo. Após alguns minutos muitas sacolas e baldes são preenchidos com os achados, identificados como aproveitáveis. 

Para alguns a fome é tanta, que um pano faz a limpeza, uma faca faz o corte e pronto, a mortadela forra o estômago e o refrigerante quente faz o papel da água, item raro por ali.

A cena ilustra apenas um pedaço do que é a rotina diária que de quem vive do lixo e tira seu sustento de garrafas pet, latinhas, fios de cobre e outros itens que tenham algum valor de revenda e são encontrados no lixão. 

Os parágrafos acima podem causar a sensação de que falamos de “mortos de fome”, mas são bem longe disso, apenas pessoas, aproveitando oportunidades, aceitando a situação precária de viver em meio ao lixo para conseguir ganhar mais que um salário mínimo, dispensado a grande porcentagem dos trabalhadores com pouco ou nenhum nível escolar. 

O trabalho é árduo, difícil, com horas a fio debaixo do sol escaldante que brilha mais de 12 horas no céu cuiabano.

Um catador independente ganha, em média, R$ 2 mil reais por mês, mas alguns conseguem catar materiais suficientes para ganhar mais que isso, como Adilson Santos, 32 anos, que trabalha informalmente no local há três anos. 

“Como servente de pedreiro eu ganhava no máximo R$ 900 reais. Aqui, apesar de todos os problemas, consigo ganhar pelo menos R$ 2 mil por mês”.

Ele conta que não fica sempre no local e faz outros bicos para conseguir compor a renda, enquanto não está em um emprego fixo. Além disso, o catador afirma que pretende se qualificar para mudar de vida. “Eu tenho um pouco de medo de ficar aqui, mas não acho serviço e não posso ficar parado. Eu comprei essa botina – mostra o sapato – e agora eu não furo mais o pé aqui não”.

O motorista André Carvalho Silva, condutor do caminhão de lixo com restos do mercado no dia da visita do jornal ao local, afirma que entende a situação dos catadores e que “é bem melhor estarem ali do que fazendo outras coisas”, tendo em vista que há muitos jovens trabalhando no lixão. “Eles estão fazendo uma coisa que ninguém quer fazer, tirando o sustento do lixo e, muitas vezes, ganham mais do que nós. Fora as coisas que eles acham para uso próprio, como roupas”. 

O motorista “encostado” Vanildo Ferreira de Souza, 43 anos, trabalha no Aterro Sanitário há cinco meses. Ele conta que decidiu ir para o local após sofrer um acidente e quebrar a perna, ficando impossibilitado de dirigir. “Um colega meu trabalhava aqui e eu vim aqui ver e fiquei”, conta, sorrindo com dois sacos de linguiça na mão, provenientes do caminhão do mercado recém-chegado.

Questionado sobre a validade do pacote encontrado, ele afirma que está vencida desde o dia 06 de janeiro. “Tá meio passado, mas não tenho medo não, vou testar”. 

O catador releva ainda que o local já lhe rendeu achados como um celular, roupas, tênis, dinheiro e até joias.

Vida cinza

A realidade de sacrifícios e renúncias diárias por conta das escolhas pode ser mais pesada para uns que para outros.

Para Lucimara Abadia, catadora há 20 anos e representante dos catadores independentes, muito além do sustento o lixão promoveu a maior tragédia de sua vida, a perda de um filho. “Eu tenho cinco filhos, mas perdi um deles para esse lugar”.

Reginaldo Aparecido Pereira tinha apenas 23 anos, quando morreu, após um acidente com um trator que o esmagou em meio ao lixo, quando o rapaz recolhia materiais para reciclagem. 
A tragédia aconteceu em setembro de 2011, mas para a mãe, relatar o fato ainda é impossível sem que as lágrimas escorram.
Desvalorização

“A empresa que passou em cima do meu filho nos tratava por mortos de fome, hoje não somos mais tratados assim, hoje somos respeitados”, relata Lucimara, criticando a postura das pessoas com relação aos catadores.

“Se houvesse coleta seletiva nem existiriam catadores, pois pegamos materiais que não eram para ser aterrados mesmo, mas é por falta de conscientização da população e do poder público. Se houvesse educação não seria desse jeito, eu penso assim. A partir do momento que tenha a coleta seletiva, nós não precisaremos estar aqui, pois isso aqui não é vida, é muito sofrimento”.

Entre um desabafo e outro, a jovem senhora de 47 anos, conta que é cozinheira e salgadeira formada, além de ser artesã, mas teve de abandonar as tentativas de mudar de vida após outra grande tragédia, a perda dos pais e um sobrinho, resultando em depressão e, consequentemente, dificuldades no trabalho.

 “A única coisa que restou para mim foi o lixo mesmo. Se alguém me perguntar se eu tenho alguma alegria, alguma esperança, a resposta é não! O que me faz acordar todos os dias e vir aqui são meus netos e filhos, mas se não fosse por eles não teria mais forças e já teria desistido, pois esperança de uma vida boa não tenho mais não”.

Ela explica ainda que desistiu do artesanato também por crer que não há valorização para os artesãos. “Estamos trabalhando com o resto todinho da cidade, mas aqui eu ganho mais do que com artesanato. Tem gente que está em um emprego bom e não valoriza. Aqui não temos nem água para beber. Tem gente que está no ar-condicionado e fica reclamando. Eu convido a passar um dia aqui com a gente”.

O buraco é mais embaixo

“Queremos cooperativas dignas, que não roubem, não passem a perna nos catadores. Já fui cooperada e não ganhei nada. Hoje não faço mais, pois não há lucro algum. A gente só trabalha e não vê resultado. Catando sozinha ganho muito mais, em quinze dias ganhei R$ 900 reais”, reclama Abadia.

Ela finaliza dizendo que, apesar da tristeza com a situação, não tem vergonha alguma do seu trabalho. “Para muitos isso aqui é vergonha, eu jamais senti vergonha. Hoje os engravatadinhos estão presos, esses daí é que tem que sentir vergonha”, pontua a catadora, se referindo ao atual cenário político.

O Diretor de Resíduos Sólidos da Secretaria de Serviços Urbanos de Cuiabá, Abel Nascimento, reitera o fato de que os catadores ganham pouco e que muitos não querem ser cooperados por esse motivo.

Plano Municipal de Resíduos Sólidos

A licitação para definir que empresa deverá gerenciar, em parceria público- privada (PPP), os serviços de resíduos sólidos e remediação do Aterro Sanitário, já virou novela.

O contrato com a atual empresa, Ecopav, deveria ser rescindido ainda no ano passado, o que não aconteceu, deixando também o projeto de implantação da coleta seletiva na espera.

No final de 2014 a Câmara de Vereadores aprovou a lei do Plano Municipal de Gestão de Resíduos Sólidos de Cuiabá. A política municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos estabeleceu algumas diretrizes municipais, como a universalização do acesso aos serviços de coleta, transporte, tratamento, destinação e disposição final dos resíduos sólidos. Sua aprovação em dezembro de 2014 atendeu ao prazo dado pelo Ministério Público Estadual (MPE MT), conforme o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado em fevereiro de 2013.

“Ano passado tivemos audiências públicas para discutir o processo licitatório do Plano Municipal de Gestão de Resíduos Sólidos. Até abril devemos abrir a licitação e fechar todos esses processos”, explica o Diretor de Resíduos Sólidos, justificando o atraso no processo que deveria ter ocorrido ainda em 2015. “Esses prazos podem ser prorrogados por necessidade, dentro do processo legal”.

Enquanto esse problema não é resolvido, a situação dos catadores é incerta, já que o Plano Municipal prevê, entre outras coisas, a inclusão social dos catadores, através da parceria entre cooperativas e a empresa que deverá ser contratada.

Em entrevista ao Circuito Mato Grosso, em agosto de 2015, o secretário de Serviços Urbanos, responsável pela implementação do Plano Municipal de Resíduos Sólidos, José Roberto Stopa, explicou que a escolha pela PPP é um investimento prolongado da Prefeitura.

“Nenhuma Prefeitura teria a capacidade de levantar de ‘bate-pronto’ até R$ 50 milhões para este investimento. Esse é um investimento que a empresa ganhadora vai colocar hoje e vai ser ressarcida em até dez anos. Então, o Poder Público está resolvendo um problema e pagando ao longo dos anos. Esse é o grande beneficio de uma PPP”, explicou Stopa.

O projeto prevê a concessão do gerenciamento e tratamentos dos resíduos sólidos por 30 anos. A universalização do serviço de coleta de resíduos domiciliares está estipulada em dois anos, incluindo alternativas operacionais para áreas de difícil acesso.

Com a parceria, a concessionária ficará responsável pela coleta e transporte dos resíduos domiciliares, recicláveis, de saúde e instalação de oito ecopontos para o recebimento de volumosos, que depois da triagem serão destinados ao Aterro Sanitário. 

O tratamento e disposição final dos resíduos também terão a atenção da concessionária, que deverá destinar os materiais recicláveis às cooperativas de catadores e os rejeitos para serem aterrados. A remediação, ampliação ou construção do novo Aterro têm prazos determinados. No caso da remediação, a concessionária terá um ano para a apresentação do projeto, e em cinco anos deverá realizar a ampliação ou construção do novo local.

Ainda está previsto o serviço de varrição mecanizada, na região central e principais avenidas, além do desenvolvimento de um programa de informação e educação ambiental.

De acordo com projeto, a coleta seletiva será inserida em todos os serviços desde o primeiro ano da instalação da concessionária, que deverá construir quatro galpões de triagem para as cooperativas, três no primeiro ano e um no segundo, além de possibilitar a coleta porta-a-porta e o aporte voluntário, com a instalação de pontos de entrega de coleta solidária.

Josiane Dalmagro

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