Ao menos 390 indígenas foram assassinados entre 2003 e 2014 no Mato Grosso do Sul, segundo relatório do Cimi (Conselho Indigenista Missionário). O número de assassinatos é mais que a soma dos índios mortos em todo o resto do país no mesmo período (364). Para o antropólogo e professor Tonico Benites, no entanto, essa é apenas a face mais cruel da luta pela terra no Estado.
Para Benites, as reservas criadas pelo governo são locais de "confinamento". Guarani-kaiowá nascido na aldeia Sassoró, em Tacuru (MS) e pós-doutorando em antropologia pelo Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), ele já foi ameaçado de morte quando fazia pesquisas na região e vê na expulsão dos índios de suas terras para essas áreas a raiz dos conflitos. A única solução, defende, é a devolução de parte do território do Estado para os indígenas.
UOL – Qual a situação dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul?
Tonico Benites – O Mato Grosso do Sul tem a segunda maior população indígena do Brasil [em primeiro lugar vem o Amazonas]. São 77 mil indígenas, cerca de 47 mil apenas guarani kaiowá, concentrados no sul do Estado, na fronteira com o Paraguai. O principal problema é a disputa pela terra, que já é demandada há muito tempo. Frente à demora na regularização dos territórios, os indígenas reocuparam uma parte.
Os indígenas reclamam mais terras?
Diferente de outros lugares como o Xingu, que é de fato uma terra indígena, com mais de 2 milhões de hectares, onde os povos indígenas nunca foram expulsos, os indígenas do MS perderam o seu espaço e foram colocados em pequenas áreas de terra, as reservas. As áreas em que os indígenas estavam foram consideras terras de ninguém, espaços devolutos, o que está na raiz de todos os conflitos.
Qual o problema das reservas?
A reserva faz parte da política indigenista, que se centrou mais no sul do país. O Estado achava que os indígenas estavam muito dispersos, que precisavam ser organizados. Eles eram retirados das terras onde já viviam, o tekoha, e colocados nas reservas, sempre criadas perto das cidades, então vilarejos, e das rodovias. Era também uma forma de civilizar e integrar. A reserva acaba sendo um lugar escolhido e governado pelo Estado para proteger os indígenas, mas ao mesmo tempo serve para liberar a terra em que eles já estavam.
O que seria o tekoha?
Tekoha em guarani tem vários significados. É o meu modo de viver, pensar, entender, circular. Os povos indígenas têm uma relação muito forte de pertencimento. Ao contrário da ideia de propriedade, quando o espaço pertence a você, no caso dos guaranis você pertence à terra. Mas a esse lugar específico, onde estavam os seus antepassados, onde morreram, foram enterrados, não a qualquer lugar. Eu amo essa terra, essa terra me ama. Fora desse lugar eu não me sinto bem, fico desvinculado.
Quantos territórios são demandados pelos indígenas?
Ao longo da retirada dos indígenas das suas terras, muitas famílias morreram, se separaram ou abandonaram a região. Comunidades inteiras desapareceram. Quando uma família demanda ao seu tekoha, ela quer apenas o local em que vivia, não o espaço dos outros. Eu nasci na reserva e cresci ouvindo que não pertencíamos àquele lugar, assumi isso. Quando voltamos, a minha família demandou só a área em que estávamos antes. Hoje há um levantamento em curso para identificar a quantidade e a localização exata de terra demandada pelos indígenas. Os seis grupos de trabalho que estão em campo dizem que esses territórios não passam de 600 mil, 700 mil hectares.
Os ataques a indígenas aumentaram?
Antes esses ataques também aconteciam, só eram ocultados. Os ataques, a própria política do governo, é muito semelhante com o que era feito no passado. Ontem [9 de novembro], por exemplo, me avisaram que chegou um grupo armado, atirando, queimando barracas, em uma aldeia. A reserva nunca foi entendida como um lugar bom de se viver. Muitas famílias resolveram sair delas e retornar para as suas terras e se depararam com fazendeiros vivendo no local, falando "isso aqui é meu, eu comprei". Frente a essa situação, acabam na beira da estrada, na periferia.
As pessoas nas reservas estão confinadas. São locais com leis rígidas, uma organização militar. Muitos são submetidos a punições humilhantes e se suicidam. Quando eu era criança, no caminho para a escola, eu via muitas pessoas acorrentadas, amarradas, mulheres que tinham o cabelo raspado, como punição. A família retirada da sua terra e jogada na reserva não tem nenhum tipo de poder.
Quantos índios vivem em reservas?
Apenas em Dourados tem 15 mil. Mas como a reserva fica perto da cidade você chega lá e é como se fosse a periferia. A vulnerabilidade é visível. Você imagina um local com 15 mil pessoas, 3.000 hectares, como é a reserva de Dourados, em que não há espaço para plantar, nada. Alguns se tornam até perigosos para eles mesmos. Já fui lá e me barraram, como se fosse um assalto, pedindo comida. O indígena que vive nessa situação passa por tudo o que acontece com as populações pobres. Por isso são criminalizados. Muitas indígenas nas reservas não têm mais família, ficam sem referência, perdidos. Os locais em que os indígenas não saíram ou reocuparam são bem diferentes. Na semana passada, colocaram um destacamento da Polícia Militar em Dourados, como uma UPP [Unidade de Polícia Pacificadora]. O Estado, como Estado, acha que é essa a forma de solucionar.
Como você vê a PEC 215 (Proposta de Emenda à Constituição que altera as regras para a demarcação de terras indígenas, de remanescentes de comunidades quilombolas e de reservas florestais)?
A PEC quer retirar o poder de regulamentar uma terra indígena do Executivo e passar para o Legislativo, o que significa o fim da regularização. O Poder Legislativo tem muitos fazendeiros, gente com interesse em explorar essas áreas. Nem se trata de dificultar, mas de acabar com a remarcação de terras no Brasil. Seriam os representantes dos fazendeiros que iriam falar se é terra indígena ou não. A Constituição Federal de 1988 foi aprovada pelo próprio povo brasileiro depois de um grande movimento de redemocratização. Ao mexer nesse texto, a PEC não ataca só os indígenas, mas todo a população. Mas os indígenas não estão mais sós. Há movimentos contra a proposta em todos os cantos. Estudantes, jovens, professores…
Há um interesse econômico nas terras demandadas pelos indígenas?
Fica muito claro que a terra indígena tem muitos recursos, importantes para a preservação, mas também madeira, ouro, entre outros, que geram interesse. Se o Mato Grosso do Sul tivesse sido demarcado, como o Xingu, hoje você veria de fato lá o mato grosso, a floresta preservada. Teriam 600 mil hectares de floresta protegida. O que a gente vê hoje? Cabeceira dos rios destruídas, água poluída, erosão por todos os lados. E isso não atinge só os indígenas, mas toda a população. Se você chega em uma área recuperada pelos guaranis, nessa terra indígena, que é bem diferente da reserva, você encontra floresta na beira do rio, uma vegetação densa. Muitos criticam, dizem que antes havia soja, plantações. Mas o indígena está deixando o espaço descansar, fazendo o reflorestamento natural.
Como você vê a CPI do genocídio?
Se realmente for levada a sério, essa CPI vai revelar a forma como aconteceu essa retirada forçada dos indígenas de suas terras, que é parte do genocídio. Você está na sua casa, sempre viveu lá, tem seu espaço, seu rio para pescar, a floresta, a roça, e, de repente, falam, "agora você tem que sair daqui e ir para a reserva". As famílias não conseguem mais organizar suas formas de vida, ficam vulneráveis, instáveis. Culturas morrem. Têm terras que o governo vendeu, mas não reconhece. O fazendeiro vai à Justiça e mostra que comprou e pagou e ele também tem razão.
E qual seria a solução para o conflito no Estado?
O movimento indígena deixou muito claro desde os anos 1980 que a solução passa pela devolução dos espaços de terra. Os indígenas que vivem em suas áreas originais não pedem nada a ninguém. Já os índios nas reservas, nas beiras das estradas, não vivem assim. A terra tem uma figura de reorganização, reorganiza a família, a comunidade. Falam que a demarcação ia inviabilizar todo o progresso, também é mentira. O Mato Grosso tem 2 milhões de hectares demarcados no Xingu e isso não atrapalha o Estado. É uma terra demandada desde os anos 1980, identificada nos anos 1990, com relatórios publicados nos anos 2000, em estudo oficial. Geralmente a mídia fala, "índio invadiu fazenda" como se fosse do nada. Mas existe uma história. Toda a área que hoje é demandada à Justiça autorizou a perícia. Resolver essa parte da terra é bom para todos.
Fonte: UOL