Sacionando em 2014 pela presidente Dilma Rousseff, o Marco Civil da Internet ainda está em processo de regulamentação, o que abre brechas para diferentes interpretações da lei. Embora o texto diga que os provedores de acesso devem tratar todos os dados que circulam na internet da mesma forma, sem distinção por conteúdo, origem, destino ou serviço, na prática, não está sendo bem assim. Enquanto as exceções a neutralidade da rede não são reguladas, empresas e operadoras testam novos modelos de negócio dentro do chamado Zero Rating, em tradução livre, Taxação Zero, como ficou conhecida a prática de oferecer acesso grátis a determinados aplicativos.
Desde que o WhatsApp se tornou uma ameaça para os serviços de voz das operadoras de telefonia, algumas adotaram a máxima de se "não pode vencê-los, junte-se a eles". É o caso por exemplo da TIM, que desde novembro do ano passado oferece ao seus clientes planos com WhatsApp ilimitado, ou seja, promoção que cria uma exceção e não desconta do plano de dados do usuário aquilo que ele gasta com o WhatsApp, seja com envio de mensagens de texto, aúdio, imagens ou vídeos. Além disso, a operadora também oferece acesso grátis a alguns apps próprios, como o TIMmusic by Deezer. Do ponto de vista do usuário, essa prática pode até ser bem-vinda, mas do ponto de vista do Marco Civil da Internet, não, pois deturpar o conceito de neutralidade da rede.
É o caso, por exemplo, do projeto Internet.org, do Facebook, que conta com a promessa do governo federal de ser implementado no Brasil e que recentemente foi caracterizado como uma afronta ao Marco Civil da Internet pelo Ministério Público. Iniciativa liderada pelo Facebook, o Internet.org teria como objetivo levar acesso a internet a dois terços da população mundial que atualmente não têm acesso à rede. Porém, para o Ministério Público Federal (MPF), o projeto não é nem internet, nem .org, e sim um aplicativo que permite acesso limitado a determinadas aplicações e conteúdos, previamente aprovados pelo Facebook.
Os dois lados da moeda
Um dos casos mais recentes envolve o Grupo Netshoes, outra empresa que aproveitou da ausência da regulamentação para lançar uma parceria com as operadoras. A partir de agora, usuários das principais operadoras têm acesso gratuito aos e-commerces da Netshoes e Zattini por meio de sua rede móvel, seja no formato de site mobile ou pelos aplicativos da empresa. O benefício é válido para contratos pré e pós-pagos das quatro principais operadoras brasileiras de telefonia móvel – Vivo, Claro, TIM e OI – com planos de dados habilitados. Em comunicado oficial, o Grupo Netshoes esclarece que seu projeto respeita as leis brasileiras vigentes e acompanha de perto as regulamentações em discussão. Essa é a mesma posição da TIM e de outras operadas que começaram a oferecer esse tipo de promoção ao cliente.
"A iniciativa visa, exclusivamente, levar facilidade e comodidade à vida das pessoas, sem qualquer tipo de privilégio ou distinção de prestação de serviços aos internautas ou sequer ferir qualquer boa prática de concorrência leal. O Grupo Netshoes reitera que o acordo estabelecido não oferecerá maior velocidade de banda larga para navegação em seus canais ou eventuais benefícios adicionais", explica a empresa em comunicado. De acordo com Bruno Couto, chefe de Marketing e Comunicação do Grupo Netshoes, o projeto é uma resposta ao consumo cada vez mais móvel do usuário. Em 2014, as compras via dispositivos móveis representavam 10% do negócio, em 2015, o acesso via site mobile e via aplicativos já representam 50% das visitas e cerca de 20% do resultado do Grupo Netshoes.
"Dentro da realidade do brasileiro, cuja maioria da população tem plano pré-pago, com pacotes limitados, pensamos que seria muito legal trazer essa comodidade e essa facilidade para ele, de acessar nossas plataformas mobile sem consumir da franquia que ele já tem, seja pré-pago ou pós-pago. A inovação por trás do Navegue Grátis é dar mais chances do usuário de usufruir das nossas condições comercias, serviços e benefícios", afirma Couto, que contou ainda que a iniciativa foi do Grupo Netshoes, e não das operadoras parceiras.
Sobre o Marco Civil da Internet e a discussão da prática de Zero Rating, Couto acredita que o lançamento da promoção Navegue Grátis é uma estratégia que anda em paralelo, ligado ao negócio do Grupo Netshoes. "Desta forma, ele não vai consumir conosco a franquia e assim terá a oportunidade de navegar em sites e aplicativos de outras categorias". Para Bruno Couto, a discussão atual é similar a do 0800, que passou a ser subsidiádo pelas empresas com o objetivo de oferece um benefício ao brasileiro. "Estamos dando um benefício ao consumidor como foi com 0800 no passado. Gostaríamos que isso fosse uma realidade, pois é bom para ele, e estamos abrindo uma porta para outras empresas também", defende o executivo.
Flavia Lefèvre, representante do Terceiro Setor por meio da Proteste, acredita que esse tipo de prática fere ao Marco Civil e que a questão é ainda mais grave no País porque grande parte dos planos de dados possuem franquia, ou seja, em determinando momento, o usuário pode chegar ao limite da sua franquia e, dessa forma, ter acesso apenas aos aplicativos que a operadora oferece dentro dessa prática de Zero Rating. De acordo com Flavia, esse é um assunto ainda em debate dentro do CGI.br, Comitê de Gestão da Internet, parte importante do processo de regulamentação do Marco Civil.
"Existe inclusive uma posição na academia de que o oferecimento de qualquer app ou conteúdo de forma gratuita fere a neutralidade da rede porque discrimina a rede na medida em que precifica [ou seja, atribui um valor monetário] os dados. Desta forma, as operadoras oferecem vantagens para algumas empresas, o que fere a inovação e a livre concorrência", explica.
Para Flavia, serviços públicos ofertados dentro dessa política de acesso grátis seria diferente, mas aplicativos de empresa que visam o lucro é ilegal. "Dar acesso gratuito ao aplicativo de uma empresa confere uma vantagem muito grande para essa companhia, e pode ser inclusive examinado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica, Cade", avalia a especialista. Na sua opinião, se o Brasil tivesse planos ilimitados de dados essa questão seria bem menos problemática pois o usuário não teria seu acesso bloqueado com o fim da franquia conforme vem acontecendo atualmente. No seu entendimento, o serviço de internet nem poderia estar sendo interrompido pelas operadoras como vêm acontecendo hoje.
Ainda de acordo com Flavia, essa prática das empresas de ofertar alguns aplicativos gratuitamente é uma malandragem, mesmo que o Marco Civil da Internet não esteja regulamentado. Conforme a lei, só existem duas situações em que a discriminação ou degradação do tráfego são autorizadas: para cumprir com requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações e diante da necessidade de priorizar serviços de emergência. A prática do Zero Rating não se encaixa em nenhuma das duas. "A operadora vai discriminar a rede no momento em que a franquia de dados do usuário acabar, pois ela bloqueia o acesso ao restante da internet e libera somente o que quer", explica. "Esse discurso da ausência de regulamentação é pouco responsável, as excessões já estão previstas e a neutralidade da rede já está em vigor. É uma ilegalidade".
Fonte: G1