Foto: Ahmad Jarrah / Circuito MT
Nas rodas de conversa entre amigos ou conhecidos é comum ouvir afirmações de que “no Brasil é caro até mesmo para morrer”. O senso comum de que funerárias cobram o olho da cara para enterrar falecidos encobre outros temas mais graves, que envolvem os serviços funerários.
Não bastasse a dor de perder um ente querido em sua vida, muitos acabam caindo em falcatruas de empresas, que aproveitam o momento de fragilidade de amigos e familiares para armarem esquemas inescrupulosos e lucrarem em cima da tristeza alheia.
A reportagem do Circuito Mato Grosso tomou conhecimento de um crime muito comum na região, que envolve funerárias, falta de fiscalização das Prefeituras e corpos que são enterrados em cidades diferentes daquela informada na Certidão de Óbito.
Um desses casos é o de uma moradora de Várzea Grande (cujo verdadeiro nome não será divulgado, sendo aqui chamada de Joana) que perdeu a mãe de 72 anos no início de setembro deste ano. Confusa em meio à tristeza da perda e à burocracia dos trâmites que envolvem as documentações do falecimento, Joana contou com a ajuda de membros da Igreja Congregação Cristã, à qual sua mãe pertencia.
A intenção de Joana era cumprir o desejo de sua mãe de ser enterrada junto ao esposo, no município de Pontes e Lacerda (450 km de Cuiabá). Para realizar o translado do corpo até a cidade do interior de Mato Grosso, os membros da Igreja contrataram os serviços de uma funerária de Várzea Grande, pagando cerca de R$ 1.800,00. Além disso, Joana desembolsou mais R$ 900,00 para que a empresa realizasse o serviço de embalsamento do corpo de sua mãe.
O que Joana não sabia é que estava caindo em um golpe. Acontece que em Cuiabá, local em que a mãe de Joana faleceu, existe a Central Municipal de Serviços Funerários, que concentra em um mesmo local todos os serviços necessários para a liberação do corpo de um (a) falecido (a) para o enterro, assim como para a elaboração de documentos, como a Certidão de Óbito. Para que o corpo de sua mãe pudesse ser velado e enterrado em Pontes e Lacerda, Joana precisaria da liberação desta Central, que só liberaria o translado caso ela contratasse uma das três empresas funerárias que possuem a concessão do serviço na capital, ou se uma funerária daquele município viesse buscar o corpo.
Sem saber desse fato, Joana acabou sendo enganada pelo funcionário da funerária localizada em Várzea Grande. Ela foi orientada por um dos funcionários da empresa a mentir que o corpo de sua mãe seria enterrado em Várzea Grande.
“O funcionário me falou que se eu falasse que iria enterrar o corpo em Pontes e Lacerda, eu não iria conseguir retirar o corpo da minha mãe do hospital e realizar o translado. Que iria ficar mais caro e dar um rolo danado”, relatou a vítima ao Circuito Mato Grosso.
Orientada erroneamente, Joana apresentou comprovantes de residência, mostrando que morava na cidade vizinha da capital e conseguiu a liberação do corpo. Porém, a funerária contratada, além de enganá-la, não realizou o translado até Pontes e Lacerda. Joana só conseguiu realizar o desejo de sua mãe com a ajuda da Prefeitura do município do interior, que, por meio de uma funerária de lá, buscou o corpo e realizou o enterro.
Os problemas não pararam por aí. Como foi informado à Central de Serviços Funerários da capital que o corpo seria enterrado em Várzea Grande, na Certidão de Óbito não consta a cidade correta em que a mãe de Joana foi enterrada. Para realizar a correção no documento, ela teve que relatar o fato aos funcionários da Central, que a orientaram a fazer um Boletim de Ocorrência na Policia Civil e buscar a Justiça. Além disso, a Central irá levar a denúncia ao Ministério Público Estadual (MPE), para que providências sejam tomadas contra a funerária e que este tipo de crime não volte a ocorrer na região.
Segundo o gerente da Central, Edson Luiz, o crime é comum na capital, já que a Prefeitura não permite que outras empresas funerárias, além das três que possuem a concessão do serviço público, realizem o funeral. Na tentativa de burlar esse sistema, empresas armam “tocaias” em hospitais e no Instituto Médico Legal (IML) e enganam os familiares do (a) falecido (a) antes que a Central tome conhecimento do falecimento.
“Recebemos inúmeras denúncias de funerárias de outros municípios, que falam que vão levar o corpo para uma cidade e levam para outra, apenas para ganhar o serviço”, relatou o gerente.
Em meio a esse esquema, a Prefeitura de Cuiabá não possui capacidade para fiscalizar a ação das funerárias. Como relatado pelo próprio gerente da Central, não há servidores públicos suficientes para coibir que empresas de outros municípios engambelem familiares e amigos de falecidos (as) na capital.
Como funciona o serviço funerário nos municípios?
Por se tratar de um serviço público, a Prefeitura de Cuiabá decidiu passar para a iniciativa privada a responsabilidade de gerir os serviços funerários no município. São três (Dom Bosco, Santa Rita e Santa Terezinha) as empresas que possuem a concessão até 2022, de acordo com o resultado do edital de concorrência pública nº 016/2011.
Além do direito exclusivo de realizar os serviços funerários particulares na capital, as três concessionárias tem a obrigação de realizar o atendimento assistencial às famílias carentes e a pessoas que morreram e não possuíam contato com família ou conhecidos. A Prefeitura de Cuiabá também passou a obrigação de manutenção de três cemitérios municipais (do Porto, da Piedade e do Coxipó da Ponte) às empresas.
A Central Municipal de Serviços Funerário é o órgão responsável por encaminhar e liberar corpos que são sepultados nos cemitérios da capital ou de outros municípios. A agência também atua no sentido de encaminhar a população carente, que não tem condição de custear as despesas com velório e aquisição de covas em cemitérios as funerárias. A elaboração de documentos, como a Certidão de Óbito, também é feita no local.
Dentro da Central, as concessionárias atuam em forma de rodízio de plantões para atender as famílias que desejam realizar o velório e enterro particular. Porém, os entes dos falecidos podem escolher outra empresa funerária da capital, que não esteja no plantão, para realizar o serviço. A liberação do corpo para os casos dos velórios e enterros realizados em outros municípios só é feita para as empresas cuiabanas, que podem ser contratadas ou então para as empresas dos municípios em que o corpo será enterrado.
Nos casos em que as famílias não conseguem arcar com os custos com o enterro, a Central disponibiliza os serviços gratuitamente. A empresa que estiver no plantão é obrigada a realizar o serviço de remoção do corpo do local do óbito (hospital ou IML) até o local do velório (realizado por conta da família) e, de lá, até o cemitério. Além disso, a expedição de documentos, uma urna popular ou caixão e véu, são dados gratuitamente. De acordo com funerárias e a Central, a Prefeitura não restitui os valores gastos com os serviços ofertados às famílias carentes.
A Prefeitura de Cuiabá ainda possui um cemitério (São Gonçalo) onde os corpos são enterrados sem nenhum custo. Neste local, o corpo fica enterrado por apenas três anos; passado este período, os restos mortais são retirados da cova e levados para um ossário. Na cova desocupada, outro corpo é enterrado. No caso de falecimento de pessoas não identificadas, a Prefeitura de Cuiabá cede espaço no cemitério Campo Santo.
Em 2015, a Central registrou 4.766 mortes na capital. Destes, 604 corpos foram enterrados de forma gratuita.
Já a Prefeitura de Várzea Grande não possui tanto controle sobre os serviços funerários do município, já que não houve abertura de concessão para a iniciativa privada. Mesmo se tratando de um serviço público, na cidade as cerca de cinco empresas funerárias funcionam a seu bel prazer.
Há apenas uma licitação com a empresa Marques e Mendonça Ltda. (Funerária Santo Antônio), que realiza o atendimento às famílias carentes do município. Segundo o secretário de Serviços Públicos e Mobilidade Urbana, Breno Gomes, a licitação com a empresa acaba em novembro deste ano e a Prefeitura deve realizar outro trâmite licitatório no mesmo mês. Segundo Breno, em média o município arca com 20 caixões doados por mês.
O Setor Funerário, ligado a Secretaria Municipal de Serviços Públicos, é o responsável por liberar os corpos para a realização dos sepultamentos, além de liberar os enterros solidários, oferecidos às famílias de baixa renda.
Seguindo os valores apresentados no Pregão Presencial (Termo de Referência nº 19/2013), as urnas, serviços de preparação do corpo e translado proposto pela Funerária Santo Antônio e acatado pela Prefeitura de Várzea Grande é de R$ 503 para adultos e R$ 375 para crianças.
Práticas de preços abusivos
Em Cuiabá, o mercado de sepultamento concedido à inciativa privada é alvo de recorrentes denúncias de cobranças de taxas abusivas da população. Para alguns vereadores da capital, o problema estaria na concentração dos serviços nas mãos de poucos empresários.
O parlamentar Juca do Guaraná (PC do B) chegou a apresentar um projeto de lei na Câmara Municipal que pretende expandir o número de concessões dadas a empresas, possibilitando que outras funerárias se instalem na capital.
“Achei por bem o número [de funerárias] ser ilimitado, para atender melhor a população cuiabana. Para ter mais opções. Tenho certeza de que o serviço pode ser mais barato. Tive acesso a dados de munícipios em que os preços praticados são bem menores que os daqui”, afirmou o vereador.
A proposta é condenada pelos empresários do ramo. De acordo com o proprietário da funerária Dom Bosco e sócio da Pax Nacional Prever – maior plano de assistência familiar de Mato Grosso -, Nilson Martins Marques, a acusação de existência de cartel em Cuiabá é “desinformação”.
O empresário afirma que os preços praticados pelas três funerárias na capital são tabelados pela própria Prefeitura. Além disso, elas estariam cobrando 7,5% menos que a média nacional nos itens básicos e 200% menos em relação aos itens de serviço de luxo. Essas tarifas também são fiscalizadas pela Associação Brasileira de Diretores Funerários do Brasil (ABREDIF). Ainda segundo Marques, as variações de preços dentro do setor se dão em itens não básicos de um funeral, como, por exemplo, flores.
Quanto à possibilidade de mais concessionárias do serviço funerário na capital, Marques defende que o número reduzido de empresas no setor possibilita a queda nos preços, além de a quantidade de concessões seguir estudos realizados pelo Poder Público. O empresário também ressalta que é difícil outras empresas entrarem no mercado na capital, devido à força das funerárias já instaladas no município.
“Ninguém pode mudar a regra do jogo, com a bola rolando. Isso é uma questão legal. Dentro do edital de licitação, existe um termo de referência. Um estudo que fazem aos órgãos de fiscalização para comprovar que a Prefeitura chegou a um número de funerárias seguindo determinados critérios. Isso é uma espécie de desinformação, de que em concessão pública há concorrência entre as concessionárias. Uma concessionária deve seguir uma tabela de preços da Prefeitura […] Muitos perguntam: ‘como é possível ter um preço menor, mesmo com mais obrigações?’ A Prefeitura chegou à seguinte conclusão: o que adianta ter 20 funerárias ou duas? A única diferença para a população será escolher o nome da funerária, já que vão pagar o mesmo preço, pois o serviço é tabelado. Se nós temos apenas três concessionárias, elas vão fazer mais serviços, conseguindo preços menores. O efeito é contrário, se você tem mais concessionárias, os preços sobem”, defendeu o empresário do ramo funerário ao Circuito Mato Grosso.
Seguindo a tabela divulgada pela Funerária Dom Bosco, que passou pelo crivo da Prefeitura e é seguida pelas outras duas concessionárias, um funeral simples adulto (incluindo caixão, manto, véu, livro de presença, câmara ardente, carro simples para remoção do corpo em Cuiabá, vestir e recompor o corpo, documentação para o translado, serviço de registro de óbito e Taxa de Serviço Assistencial) não sai por menos de R$ 1.100.
Já o funeral mais luxuoso, incluindo os itens citados acima, mas com preços mais elevados, fica em torno de R$ 10.100.
“É uma ignorância falar que existe outro lugar mais barato, é preciso ver as condições para falar se é mais barato ou mais caro. Se algum lugar conseguir fazer um velório mais barato, não se discute. Deveria ter participado e discutido na concessão. Tem que ver se os preços são abusivos ou não. E não são”, afirmou Nilson Marques.
Assembleia Legislativa entra na discussão
Mesmo se tratando de um serviço público de responsabilidade das Prefeituras, a Comissão de Defesa do Consumidor e do Contribuinte da Assembleia Legislativa iniciou um debate sobre o tema.
O deputado Coronel Pery Taborelli (PV), que preside a comissão, afirma que já recebeu inúmeras denúncias de irregularidades envolvendo o tema e que o intuito é cobrar para que as Prefeituras mato-grossenses regularizem e fiscalizem os serviços.
Diante das situações mais graves já encontradas, a comissão declarou a possibilidade de acionar o Ministério Público para tentar buscar soluções de melhoria ao atendimento de serviços funerários em todos os municípios mato-grossenses e, ainda, buscar junto à Prefeitura de Várzea Grande a regulamentação definitiva desses serviços na cidade.
“Uma série de denúncias chegaram, de todas as ordens. A partir daí, resolvemos chamar os proprietários para que discutíssemos o assunto. Apesar de a concessão ser municipal, o tipo das denúncias foge do âmbito municipal”, relatou o deputado.