Fotos Ahmad Jarrah
O Senado Federal aprovou no dia 08 de setembro o Projeto de Emenda à Constituição (PEC) 71/2011 por unanimidade, com 65 votos favoráveis em primeiro turno e 58 em segundo – as PEC’s precisam ser aprovadas em dois turnos. O projeto oferece possibilidade de indenização, em dinheiro, de terras desapropriadas por terem sido demarcadas para reserva indígena. A PEC faz parte da “Agenda Brasil”, e agora segue para apreciação dos deputados federais na Câmara.
O texto da PEC 71/2011 permite indenizar detentores de títulos dominiais em terras declaradas indígenas, expedidos até 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. A proposta também prevê o pagamento pelas benfeitorias efetuadas sobre o terreno. Não haverá indenização se a posse tiver sido de má-fé, ou seja, se no processo de obtenção da propriedade tentou-se, intencionalmente, burlar a lei ou cometer práticas criminosas.
A proposta pode ajudar a resolver um dos casos mais emblemáticos de disputas por terras envolvendo proprietários rurais e índios, em nível estadual e nacional.
Denominada reserva xavante, pela justiça, a gleba Suiá Missú, localizada em Alto Boa Vista (1062 km de Cuiabá), na região do Araguaia, por pouco não ficou manchada com o sangue de índios, agricultores locais e Polícia Federal e exército. Após décadas de disputas, em 1998 o governo federal homologou o território indígena, que já estava ocupado por agricultores e que vinha sendo alvo de disputas desde os anos 1960, na época sendo considerado o maior latifúndio do Brasil, com um 1,5 milhão de hectares.
Os índios xavantes, entretanto, voltaram para suas terras originais somente seis anos depois, em 2004, após ficarem acampados durante 11 meses à beira da estrada. Os conflitos, no entanto, não se encerraram, encontrando seu ápice em 2012, com a retirada, à força, dos agricultores da gleba. Grandes fazendas, de gado e soja, foram desapropriadas. Porém, pequenos produtores rurais, duas escolas públicas, pequenos comércios e até templos religiosos também deixaram de existir.
Outro caso que chamou a atenção da sociedade recentemente também se deu na região Centro-Oeste, dessa vez, em Antônio João (280 km de Campo Grande), em Mato Grosso do Sul. O povo indígena que ocupa a região, os Guarani-Kaiowá, tiveram a homologação de suas terras publicada em 2005, sem, no entanto, possuírem o direito de usufruir da terra. Com um processo de disputa pela terra parado na justiça desde o referido ano, centenas de índios ficaram confinados em menos de 150 dos 9.317 hectares que foram homologados.
Os indígenas invadiram propriedades de terras na região. O conflito, que só foi acalmado com a intervenção do Ministro da Justiça, Eduardo Cardoso, resultou na morte do indígena Semião Fernandes Vilhalva, de 24 anos, no último dia 29 de agosto.
“PEC beneficia proprietários, mas não indígenas”
Embora a PEC 71/2011 tenha potencial de garantir, da parte dos produtores, o ressarcimento de terras que foram homologadas como territórios indígenas pelo governo federal, ela não tem a proposta de reparar os prejuízos históricos de milhares de famílias indígenas que durante décadas conviveram com a morte e a falta de dignidade, expulsos de seu território, longe de sua terra natal.
A opinião é do Doutor em Antropologia e professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Paulo Delgado, que recebeu a equipe do Circuito para discutir as implicações da PEC 71/2011.
Delgado explica as origens do latifúndio no Brasil, um dos principais inimigos da reforma agrária e, consequentemente do direito à terra dos povos indígenas. Ele afirma que a situação atual de disputa entre fazendeiros e índios teve início em meados do século XIX, em 1850, quando a “lei de terras” instituiu a propriedade privada no território brasileiro e que o fato de os Estados passarem a legislar sobre as terras, já no período republicano, originou “muitas situações que levaram a sérios problemas”.
“Quando os Estados passaram a legislar sobre a terra, já na República, tivemos aumento potencial de problemas graves, entre eles, o aumento da grande propriedade privada, a oficialização do latifúndio no Brasil”, diz ele.
O docente reconhece que a PEC 71/2011 pode trazer um componente positivo para a discussão, sublinhando a possibilidade de colocar em xeque propriedades rurais que são frutos de grilagem ou falsificação de papéis e de títulos, “algo bem comum, sobretudo em Mato Grosso”, segundo ele. Entretanto, Delgado afirma que o dispositivo não contempla as décadas de marginalização das quais foram submetidos os povos indígenas.
“Acho que a PEC avança, pois pode colocar em xeque alguns títulos de propriedade por conta dessa componente da ocupação de boa fé. Mas ela não contempla outra injustiça, que é aquela sofrida pelos povos indígenas ao longo do processo. Terras que apresentam degradação ambiental, assoreamento de rios e córregos que são essenciais para a sobrevivência desses povos indígenas, uma supressão total da cobertura vegetal, extinção de fauna e de flora. A PEC não corrige isso”.
O antropólogo ainda sublinha a importância cultural e de costumes que os povos indígenas exercem sobre a sociedade brasileira, essenciais até mesmo nas discussões sobre fronteiras e limites territoriais do Brasil.
“Os povos indígenas contribuíram muito para que o Brasil tivesse a dimensão territorial que o tem hoje. Em momentos de implementação e discussão sobre políticas de fronteiras, o contato que os povos indígenas tiveram com os portugueses foram utilizados como argumentos. Isso sem falar que a cultura indígena está presente no nosso dia a dia”.
Famato considera a aprovação “muito positiva”
Em nota enviada ao Circuito Mato Grosso, a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso (FAMATO) classificou como “muito positiva” a aprovação da PEC 71/2011.
“A Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso (Famato) entende como muito positiva a aprovação pelo Senado da PEC 71, que prevê a indenização a proprietários de terras que passarem a ser consideradas indígenas. Para o presidente da Famato, Rui Prado, essa medida corrige uma distorção quando houver a necessidade de devolução de terras para índios, já que a reparação não era prevista anteriormente”.
Confira mais detalhes da reportagem do jornal Circuito Mato Grosso