Vários prédios foram desocupados de forma apressada, incluindo um, em frente ao Ministério das Relações Exteriores do Talebã, onde figurões da Al-Qaeda costumavam se encontrar. Dentro dele, foram encontradas 1,5 mil fitas cassete.
Entre os objetos encontrados no prédio saqueado estavam as fitas de áudio, que foram vendidas por uma família afegã a uma loja de cassetes. Com o fim do domínio do Talebã, passou a ser possível ganhar dinheiro produzindo música pop, que antes era proibida, e as fitas poderiam ser apagadas e regravadas com as canções de sucesso.
Mas um cinegrafista que trabalhava para a CNN ouviu falar sobre o material e convenceu o dono da loja a devolvê-las, dizendo que poderiam ter algum conteúdo importante. Ele estava certo: elas eram a biblioteca em áudio da Al-Qaeda.
As fitas acabaram chegando ao Projeto de Mídia do Afeganistão no Williams College, no Estado americano de Massachusetts, que pediu a Flagg Miller – especialista em literatura e cultura árabe da Universidade da Califórnia Davis – que fizesse uma imersão na mistura desordenada de sermões, músicas e conversas íntimas gravadas nas fitas. Até hoje, ele é o único a ter ouvido todo o material.
"Foi um sentimento totalmente esmagador", diz Miller ao lembrar do dia em que recebeu duas caixas de fitas empoeiradas em 2003.
"Não dormi por três dias pensando no que seria preciso para que aquilo tudo fizesse sentido."
Mais de uma década depois, Miller escreveu um livro sobre suas descobertas, chamado "The Audacious Ascetic" (O Asceta Audacioso, em tradução literal). As fitas vão do final da década de 1960 a 2001 e mais de 200 pessoas aparecem falando. Entre elas, Osama Bin Laden.
Sua voz aparece nas fitas pela primeira vez em 1987 – na gravação de uma batalha entre mujahideen, como são chamados combatentes árabes-afegãos, e forças soviéticas. Bin Laden havia deixado a sua casa na Arábia Saudita, onde fora criado com todo luxo, para fazer o seu nome lutando contra os invasores infieis do Afeganistão.
Inimigo
"Bin Laden queria criar a imagem de militante eficaz – trabalho nada fácil, porque ele era conhecido como um dândi, que usava botas de deserto de marca", diz Miller.
"Mas era muito sofisticado em sua autopropaganda, e as fitas são parte dessa história de construção do mito."
A coleção também traz discursos proferidos por Bin Laden nos final dos anos 1980 e início dos 1990 para públicos na Arábia Saudita e no Iêmen.
"É fascinante como Bin Laden fala sobre as ameaças à Península Árabe – mas quem é o inimigo? Não são os Estados Unidos, como costumamos pensar, ou o Ocidente. São outros muçulmanos", diz Miller.
Apesar de os Estados Unidos terem acabado virando o alvo número um de Bin Laden, quase não há referências ao "inimigo distante" nestes primeiros discursos. Por muitos anos, ele estava muito mais preocupado com o que chamava de "falta de fé" entre muçulmanos que não aderiam à sua rigorosa e literal interpretação do Islã.
"Eles são xiitas em primeiro lugar e acima de tudo. Eles são do partido Baath do Iraque. Eles são comunistas e do partido de Nasser do Egito", explica Miller.
"Bin Laden queria trazer a jihad (guerra santa) para a questão de quem é um verdadeiro muçulmano."
Naqueles tempos pré-internet, fitas cassetes eram o veículo perfeito para proselitismo e propaganda – não surpreende que Bin Laden fosse um fã.
Podiam ser compartilhadas facilmente – copiadas ou passadas mão em mão – e censores prestavam pouca ou nenhuma atenção a elas. Também eram extremamente populares no Oriente Médio e no mundo árabe, onde as pessoas as ouviam com frequência, com amigos, formulando ideias revolucionárias.
Embora sermões e discursos formem o grosso da coleção, também há curiosidades. Entre elas, uma conversa com um gênio – ou Jinni, em árabe – que tomou o corpo de um homem. Falando por meio dele, o gênio afirma que tem conhecimento de tramas políticas, embora afirme-se que Bin Laden não perdia tempo com superstições.
Também há uma gravação de militantes árabes-afegãos – árabes lutando no Afeganistão contra a forças invasoras soviéticas – tomando café da manhã em um campo de treinamento no final dos anos 1980. Esta conversa franca revela o tédio da vida no front. A conversa é dominada pelo desejo por boa comida e pelas maravilhas culinárias de "Mr. Hellfire" – um chefe famoso em Meca, conhecido por sobremesas deliciosas.
Também há horas de hinos islâmicos – músicas que narram batalhas e levam mensagem aos aspirantes a Mujahideen (combatentes). Uma ferramenta de recrutamento essencial.
"Para muitos, esse era o caminho para a jihad – através do coração", diz Miller.
"Essas música tem um componente emocional, trazendo para os lares o som do combate sobre o qual muitos liam e viam na TV. Há algo íntimo em ouvi-los em fones de ouvido porque eles de fato tocam a sua imaginação."
E Phil Collins? Algum Rolling Stones ou Fleetwood Mac? Infelizmente não – mas músicas pop orientais aparecem com Gaston Ghrenassia, que costumava se apresentar como Enrico Macias, um judeu argelino que ficou famoso primeiramente na França, antes de alcançar sucesso mundial em 1960 e 1970.
"Acho que essa coleção de músicas francesas revela a extensão das línguas faladas pelos árabes-afegãos em Kandahar e suas muitas experiências no mundo. Muitos haviam morado no Ocidente por longos períodos e pode-se até dizer que haviam levado múltiplas vidas", diz Miller.
"Essas músicas sugerem que alguém, em algum ponto da vida, gostava das músicas deste judeu argelino – e pode ter continuado a gostar, apesar dos ensinamentos que consideravam isso uma heresia."
Gandhi
Outro nome inesperado que aparece nas fitas é Mahatma Gandhi, citado como inspiração por Osama Bin Laden em um discurso de setembro de 1993.
Este também é o primeiro discurso na coleção em que Bin Laden pede que apoiadores ajam contra os EUA boicotando seus produtos.
"Considerem o caso da Grã-Bretanha, um império tão vasto que alguns diziam que o sol nunca se punha."
"Foram obrigados a se retirar de uma de suas maiores colônias quando Gandhi, o hindu, declarou um boicote contra os seus produtos. Temos que fazer a mesma coisa hoje com os EUA."
Bin Laden também encoraja o público a escrever cartas para embaixadas americanas para alertar sobre o papel dos EUA no conflito do Oriente Médio. Até aí, não há menção à violência contra os EUA.
"Isso muda em 1996, dias após ele ser deportado do Sudão", diz Miller.
"Sob pressão dos EUA, ele perde sua cidadania da Arábia Saudita em 1994. Também havia perdido todo o seu dinheiro e estava quase esgotado emocionalmente. Então Bin Laden precisa criar algo desesperadamente para reanimar os seus simpatizantes extremistas, e isso é feito em seus discursos em Tora Bora em 1996."
O discurso nas montanhas de Hindu Kush costuma ser chamado de "declaração de guerra de Bin Laden". Mas, após ouvir o áudio completo dos discursos, Miller diz que isso não é completamente preciso.
"O terço final do discurso tem 15 poemas, e muitas vezes quando este discurso é traduzido a poesia não aparece. Por causa disso, nós não reconhecemos o quanto este discurso não era uma declaração de guerra, como foi descrito pela imprensa na época."
"Ele fala sobre a urgência de dominar os EUA, mas à luz de uma luta muito maior – a luta contra a corrupção saudita."
É apenas em uma das últimas gravações da coleção que há alguma alusão ao 11 de Setembro, a de um casamento do guarda-costas de Osama Bin Laden, Umar, que foi gravado alguns meses antes dos ataques a Nova York e Washington DC.
Violência
"Há muita risada na fita e então Bin Laden aparece, e não há mais alegria. Ele fala sobre como celebrar é importante, mas não deve ofuscar assuntos mais sérios."
Bin Laden faz, então, uma referência nefasta.
"Ela fala explicitamente sobre 'um plano' – sem revelar detalhes – e sobre como estamos próximos de 'ouvir notícias', e ele pede a Deus que 'dê sucesso a nossos irmãos'", diz Miller.
"Entendo que ele se referia aos ataques de 11 de Setembro. Ele está falando especificamente sobre os EUA naquela conjuntura."
É curioso que entre mais de uma década de gravações com Osama Bin Laden, a coisa com a qual ele costuma ser associado com mais frequência – violência terrorista contra o Ocidente – seja pouco mencionada.
"O primeiro inimigo da Al-Qaeda na maioria dessas fitas, na maior parte do tempo, são líderes muçulmanos", diz Miller.
"A presença contínua da Al-Qaeda no Iêmen, seus efeitos no Iraque e a contínua devastação de vidas muçulmanas no mundo muçulmano apenas cofirma o fato de que essa organização, essa ideia, pede muitos caminhos sangrentos."
"Não há nada de inevitável sobre o 11 de Setembro nessas fitas. Foi difícil me lembrar disso trabalhando nelas."
Fonte: BBC BRASIL