Sem legislação adequada, comunidades terapêuticas (CTs) sofrem com ‘boicote’ do Governo estadual e municipal, em Cuiabá. Em plena época da realização da Semana Estadual de Prevenção às Drogas, uma das entidades responsáveis pela luta contra a dependência química e alcoólica foi excluída do debate.
Como preconiza o Governo Federal, por meio dos ministérios da Saúde e Direitos Humanos, as comunidades terapêuticas são instituições privadas, sem fins lucrativos e financiadas, em parte, pelo poder público. Devem oferecer acolhimento para pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de drogas. São instituições abertas, de adesão voluntária, voltadas a pessoas que desejam e necessitam de um espaço protegido, em ambiente residencial, para auxiliar na recuperação da dependência à droga. Durante esse período, os residentes devem manter seu tratamento na rede de atenção psicossocial e demais serviços de saúde que se façam necessários.
“Estou para entregar os pontos e fechar minha comunidade na capital. Sem apoio, sem ajuda, e pior, ‘nadando contra a maré’ das fiscalizações absurdas das vigilâncias sanitárias estadual e municipal, nossa clínica está para mandar os pacientes embora e acabar com o trabalho de seis anos”, disse Silvana Córdova, uma das coordenadoras da clínica Valor da Vida. Segundo ela, as constantes multas e falta de flexibilidade por parte dos órgãos competentes estão causado uma crise no setor das CTs em Cuiabá.
Para se ter uma ideia da crise, das 20 comunidades existentes na região metropolitana de Cuiabá, apenas duas obtiveram o certificado para trabalhar. As demais estão oficialmente inaptas para atuar com dependentes químicos ou com viciados em álcool. “Não dá para entender porque o governo quer fechar mais uma porta na luta contra o uso e abuso de álcool e drogas. Porque a saúde condena os serviços prestados pelas CTs alegando que somente eles são os donos da verdade, sendo que o sistema de saúde não consegue atender toda a demanda. Não seria mais fácil se houvesse um diálogo?”, questiona Silvana.
‘COMPLÔ’
Para seu esposo e diretor-geral do Valor da Vida, Anderson Michel Mendonça, existe um complô dos gestores públicos, já que o governo ‘buscaria’ apenas números. “Se eles não cumprem a meta e o tratamento no combate às drogas, o dinheiro não vem. Por conta disso, nós [as clínicas] somos excluídos como alternativa de tratamento e internação. Já que o trabalho de recuperação estaria sendo desenvolvido por nós e não por eles. Assim ao invés de trabalharmos juntos em prol da prevenção, combate e tratamento dos efeitos das drogas, fragmentamos e cada um faz o que quer/ou pode”, explicou.
De acordo com ele foi cobrada uma multa de 7 mil reais porque nem todos os profissionais que trabalham no local estavam com a carteira de vacinação em dia. “Nós não tivemos tempo para atualizar as carteiras dos nossos funcionários. O prazo foi ridículo e não tem como uma pessoa, por exemplo, tomar todas as vacinas de que precisa em um dia. Outro absurdo foi cobrar multas por falta de sabão líquido no banheiro, sem que tivéssemos tempo de atender as exigências. Não houve conversa, foi um fiscal olhando e anotando para depois de dez dias a conta chegar e o alvará ser negado”, pontua o diretor.
VALOR DA VIDA
Numa chácara de 2 mil metros quadrados, com acesso pela estrada que leva ao Distrito da Guia, em Cuiabá, jovens que deixaram trabalho, família e estudos de lado e que por um motivo ou outro se tornaram dependentes químicos podem encontrar tratamento. O centro, que atende apenas homens adultos, existe há cinco anos e não tem “fins religiosos”, de acordo com Anderson, destacando que a dependência química é uma doença “física, mental e social”, de acordo com a Organização Mundial de Saúde.
O tratamento custa em média R$ 1 mil e engloba todo um trabalho especializado para recuperar o dependente químico e reinseri-lo na sociedade. A cada dez pacientes privados a instituição oferece duas vagas gratuitas para pessoas carentes.
MÃOS ATADAS
Além dos profissionais que trabalham nas instituições terapêuticas, o ‘coro dos descontentes’ pode ser confirmado pela psicóloga Ivete Pires Ribeiro, que atuou no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas de Várzea Grande (CAPSad). A profissional teceu críticas ao poder público dizendo que depois da conquista do Sistema Único de Saúde (SUS) pouco mudou. “Quando entra a politicagem, as coisas se cristalizam e profissionais sérios e comprometidos com a saúde pública ficam de mãos atadas. Isso porque tratam as pessoas como números em uma planilha”, pontuou.
OUTRO LADO
Néio Lúcio Monteiro Lima, coordenador estadual de Políticas sobre Drogas, explicou, durante entrevista ao Circuito Mato Grosso que o tema carece de legislação e, por conta disso, a única saída era que as entidades buscassem uma forma de representação.
“Estamos precisando de um marco regulatório, tanto nacional quanto estadual, que trate desse assunto. As comunidades não fazem parte da área da saúde e não fazem parte da assistência social, então é preciso definir de qual rede que elas farão parte. Se vai ser da saúde, elas terão que trabalhar nos moldes e exigências da saúde. Se for assistência social, da mesma forma”, comentou o coordenador.
Ainda segundo Néio, para se obter a habilitação para atuar na área é necessário uma série de exigências da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). “As comunidades precisam apresentar o projeto terapêutico, número de funcionários (médicos, psicólogos, psiquiatras, enfermeiros); há exigência de oficinas – onde serão debatidos os problemas entre os residentes, uma série de espaços dentro da instituição (como refeitório, sala médica, sala do psicólogo, quartos arejados) e atender todas as medidas que requer um trabalho como este”, disse o representante da Secretaria de Direitos Humanos.
Sobre a questão da exclusão das comunidades terapêuticas do Fórum estadual, Néio negou qualquer preterimento. “A própria secretária do Conselho de Combate às Drogas convidou a todos. E abrimos as portas, pois se houver o debate – como está existindo, é preciso que se apesentem os prós e os contras. Se não, não encontraremos um caminho”, disse.
Contudo, ao ser questionado sobre um carimbo de ‘cancelado’ nos contatos oferecidos em materiais educativos do Fórum, Néio ficou desconfortável: “Veja bem, há casos que um dependente se trata, a partir dai ele cria uma comunidade. Aí é aquela história ‘doente cuidando de doente’. Precisamos obedecer a critérios que rezam a Anvisa, não dá para sair criando clínicas sem as condições de atendimento aos dependentes”.
NOTA DA SECRETARIA DE SAÚDE
Por meio de e-mail, várias questões referentes ao tema, foram respondidas pela Secretaria de Saúde de Mato Grosso (SES). Conforme o Estado, os polos para atendimento de dependentes de substâncias psicoativas são os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial para Dependentes Químicos) municipais, porém não são todos os municípios do estado que dispõem desse serviço.
A nota explicou também sobre as unidades de atendimento na capital: de acordo com a assessoria de imprensa da SES-MT, o órgão está vinculado ao CAPS AD e uma Unidade de internação: Unidade III do CIAPS – Adauto Botelho. Essas unidades destinam-se a desintoxicação, reabilitação e reinserção familiar e social dos pacientes com dependência em substâncias psicoativas.
A unidade III e o CAPS AD não fazem atendimento a menor de idade, esse é realizado pelo CAPS Adolescer (municipal).
NÚMEROS
A SES informou que os atendimentos realizados no CAPS AD, em 2014, foram em número de 8.551, com média mensal de 712. Este ano, de janeiro a abril, foram realizados 2.763 atendimentos, com média mensal de 690. Em relação à internação na Unidade III, a demanda é consideravelmente grande, porém estatisticamente é realizada uma média anual de 350 a 500 internações.
A Secretaria informou que não disponibiliza dados regionais de atendimentos, de banco de dados ou estatísticas. “A Secretaria de Estado de Saúde (SES) está em processo de discussão para implantação e estruturação de um banco de dados estadual quanto ao referido assunto”, anunciou.