Política

Expressão “Gênero” fica de fora do Plano Municipal de Educação

Foto: Andréa Lobo / Arquivo CMT

O Plano Municipal de Educação de Cuiabá (PME), que irá nortear o setor educacional nos próximos dez anos na capital, virou questão de discussão religiosa. Isso porque, ao ser levado à Câmara de Vereadores, o PME sofreu alterações que atendem diretamente aos anseios da comunidade cristã do município.

O PME contém as metas e estratégias para o sistema educacional das instituições públicas e privadas, em todas as etapas e modalidades da educação básica e superior no município. Entre as metas estabelecidas no plano estão as políticas públicas para a educação infantil, ensino fundamental e médio, educação de jovens e adultos, ensino superior e a valorização profissional.

Porém, entre as 20 metas e 125 estratégias estabelecidas pelo Fórum Municipal de Educação, apenas uma questão chamou a atenção dos vereadores da capital, a que envolvia a palavra “gênero”.

Um dos trechos da meta de número oito do PME diz: “Manter e ampliar a execução das Politicas de Educação Inclusiva…”. Para isso, foram propostas algumas estratégias, como: “Implementar ações pedagógicas voltadas aos temas transversais (saúde, trânsito, meio ambiente, ética, pluralidade cultural, trabalho e consumo, orientação sexual, educação em direitos humanos e outras que tratem da diversidade)".

O pastor evangélico e vereador Oséas Machado (PSC) foi um dos responsáveis pelo levante na Câmara Municipal. Seguindo as ideologias de organizações religiosas, como o Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política (Fenasp), o parlamentar defendeu que a implementação desses elementos na formação de docentes anularia “identidades” de meninos e meninas e passaria “por cima” dos valores familiares.

“São termos que não concordamos que deveriam estar na grade curricular. Daqui a uns dias podem sair, por exemplo, materiais ensinando crianças sobre questões de sexo. Essa questão sexual as crianças têm que aprender, mas é com seus pais e não dentro da sala de aula”, afirmou Oséas ao Circuito Mato Grosso.

Complementando sua linha de raciocínio, o parlamentar apontou outras palavras colocadas na oitava meta que colocariam em risco a família tradicional cristã. “Suponhamos que queiram fazer mais tarde um material para distribuir nas escolas ensinando às crianças essas questões de sexo. As pessoas têm preocupação, pois existem pessoas no Congresso Nacional que defendem ideias que achamos absurdas dentro do contexto familiar. O item 3 tem as ideias de ‘pruralidade cultural’ e ‘orientação sexual’, elas são muito pesadas. Se você trazer uma criança no sistema que estamos vivenciando hoje, se pode querer direcionar a cabeça dela” [sic].

O vereador aponta ainda que a elaboração do plano pode ter sofrido influências de grupos que defendem a ideologia de gênero. “Foi tendencioso. O Sintep Cuiabá [Sindicato dos Trabalhadores do Ensino Público] soltou uma nota repudiando as pessoas que estavam contrarias a essas ideias que foram introduzidas no plano, ideias que não estão no Plano Nacional. Se há alguma maldade, é do grupo que influenciou e colocou essas ideias”, afirmou.

Contestando o que é defendido pelos líderes religiosos, a professora de psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e membro da Comissão de Educação do Conselho de Psicologia Jane Cotrin afirma que a inclusão dessa meta no PME é necessária, pois “as questões de sexualidade permeiam nossa vida do nascimento até a morte, envolvendo nossas relações sociais, culturais, identitárias”.

A especialista em educação explica ainda que a compreensão das relações sociais envolve diferentes tipos de vínculos, escolhas e modos de ser e agir, sendo necessários a compreensão e respeito. 

“Falar sobre nossa sexualidade nos ajuda a compreendê-la, a desmistificá-la e a desnaturalizar certos conceitos que temos como verdadeiros e que sustentam o preconceito e a intolerância que vemos hoje e que são motivos de sofrimento intenso para pessoas e famílias, fragilizando a todos”, afirmou Cotrin.

Assim como grupos de direitos civis de todo o país, a psicóloga aponta uma distorção do conceito de gênero nas discussões públicas, que seria a ação oriunda da tentativa de grupos ao banir a noção de “igualdade de gênero” do debate educacional e reificar as desigualdades e violências sofridas por homens e mulheres no espaço escolar.

“Ocorre que há uma contenda, liderada por alguns grupos religiosos e políticos, que visa impedir que tais discussões ocorram nas escolas distorcendo o termo, inescrupulosamente, e desrespeitando lutas e conquistas de muitos movimentos por direitos e por inclusão social. Tais grupos estão disseminando a ideia de que há uma 'ideologia de gênero' que visa acabar com as famílias, com os papéis sociais atribuídos aos pais (pai e mãe), com a organização social e que poderia desestruturar toda a sociedade. Mas essas não são afirmações verdadeiras, ao contrário, a proposta de inserir discussão sobre gênero, diversidade sexual e sexualidade nas escolas visa fortalecer as pessoas, a escola, as famílias, minimizando a violência que se vê em torno disso. É muito importante que tenhamos clareza que a ausência de discussões sobre estes temas nas escolas favorece o preconceito, a intolerância e a violência. E será que o papel da igreja é o de disseminar a intolerância? Não seria o contrário?”, questiona Jane Cotrin.
 
Metas para educação e desenvolvimento social

O PME de Cuiabá foi elaborado pelo Fórum Municipal de Educação, composto por representantes da Secretaria Municipal de Educação (SME), Conselho Municipal de Educação, Sindicato dos Trabalhadores do Ensino Público (Sintep) – subsede Cuiabá, e Câmara Municipal de Cuiabá. 

O documento, de acordo com o Ministério da Educação (MEC), deve ser sancionado pelo prefeito Mauro Mendes (PSB) até esta quinta-feira (24), após ter passado pela apreciação dos vereadores. Antes disso, o plano foi discutido em conferência realizada no mês de maio e contou com a participação de representantes de vários segmentos educacionais.

Sobre o PME e a 8ª meta que gerou polêmica, o secretário municipal de Educação e presidente do Fórum Municipal, Gilberto Figueiredo, destacou ao Circuito Mato Grosso que o documento foi amplamente discutido por mais de 200 delegados na conferência municipal e que as questões de gênero e sexualidade devem estar inseridas nas metas educacionais das instituições.

“O plano cita palavra a ‘gênero’, existe um imbróglio a nível nacional que confunde isso com ‘ideologia de gênero’, mas não é isso que está previsto no PME. O plano também cita que entre as atividades transversais nós estaríamos trabalhando também com educação sexual, que não está relacionado a implicar na criança à escolha de sexo, e sim trabalhar com a questão da gestação precoce, doenças sexualmente transmissíveis etc. O que é necessário estar no currículo das escolas”, defendeu Figueiredo.

Entre os assuntos que comportam a meta 8, na verdade também estão situações como violência, respeito à mulher, bullying e outros preceitos que parecem ter passado despercebidos, mas que são o grande mote da realidade escolar.

Helena Maria Bortolo, representante do Sintep Cuiabá e membro do Fórum Municipal, também desqualificou a afirmação da existência de ideologia de gênero no PME. 

“Quando se trata de questões de gênero, nós a tratamos como questões de homens e mulheres. São as questões do nosso cotidiano, das nossas convivências, enfim, das questões que são vivenciadas por homens e mulheres. Do ponto de vista do Sintep, não há nenhuma complexidade e nenhuma alteração significativa que possa dar outro significado na questão de gênero”, afirmou Bortolo.

“Pai Nosso” na “Casa dos Horrores” 

Foi sob apelo cristão que na terça-feira 23 a Câmara Municipal de Cuiabá aprovou, por unanimidade, duas Emendas Supressivas que retiraram da 8ª Meta do PME as expressões: "gênero", “diversidade sexual” e “orientação sexual”.

A sessão ordinária que culminou nas mudanças foi acompanhada por religiosos de diversos segmentos ou igrejas, principalmente a católica. Lotando as galerias e a Praça Paschoal Moreira Cabral, a população carregava cartazes com palavras de ordem pedindo o fim do que chamam de “ideologia de gênero”. Orações como o “Pai Nosso” e “Ave Maria” foram entoadas momentos antes da abertura dos trabalhos. A Mesa Diretora da Casa de Leis chegou a alugar um telão e mesa de som para que os fiéis pudessem acompanhar a votação do lado de fora.

Dentro do Parlamento, líderes religiosos também acompanharam a votação para garantir que os seus desejos fossem sacramentados. Após a aprovação das duas ementas, a comemoração fervorosa tomou conta das galerias, plenário e até mesmo da área destinada à imprensa, que na ocasião estava lotada de lideranças das igrejas católica e evangélicas. 

A expectativa é que o projeto seja avaliado pelo prefeito Mauro Mendes o mais rápido possível.

Segundo a psicóloga Jane Cotrin, a mudança no Plano Municipal de Educação traz sérios riscos à sociedade, principalmente para as crianças que se formarão sem esse tipo de discussões.

“Acredita-se que, ao falarmos sobre gênero, diversidade sexual e sexualidade estamos incitando crianças e jovens a práticas que muitos condenam. Mas isso não é real. Falar sobre tais assuntos, com a profundidade e respeito que o tema merece, é permitir que as pessoas – neste caso, alunos e alunas – possam vivenciar sua própria sexualidade e seus relacionamentos com mais consciência e responsabilidade, com menos intolerância e preconceito. Então, um dos prejuízos de não falar é exatamente este: deixar que se alastre o preconceito e o desconhecimento de si mesmo e dos outros; deixar que nossos alunos e alunas aprendam sozinhos e de forma inadequada questões de máxima importância para a vida de cada um; deixar que a intolerância, o medo e a violência que esses temas geram tome conta das relações dentro e fora das escolas”, sintetizou a especialista.

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Redação

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