Cidades

Espectros que a sociedade ignora

Na região do Terminal Rodoviário de Cuiabá, próxima ao bairro Consil, é possível ver pessoas geralmente magras, sujas e maltrapilhas, vagando pelas ruas ou sentadas ao chão. Embora a imagem de cada um seja um tanto ‘impactante’, boa parte é considerada como ‘invisível’ ou ‘lixo da sociedade’. O que poucos sabem – apesar de não ser difícil imaginar – é que cada um daqueles indivíduos é ser humano, com histórias, sentimentos e lembranças. No entanto, por algum motivo, entrou no mundo das drogas. E hoje é usuário de crack.

Expostos à violência, boa parte vive ‘cada um por si’. As condições de vida são escassas, sendo que o concreto passa a ser a cama, a cadeira e o encosto. Quando chove, o improviso é colocado em prática, através de restos de papelão ou plástico que são encontrados pelos entulhos espalhados na rua. A comida é pouca, e quando têm eles desconfiam. Há relatos de que alguns morreram por envenenamento, após usufruir da  ‘caridade’ de alguém. O que resta são as sobras encontradas em qualquer lata de lixo.

Além destes obstáculos diários, há também a briga pela vida em meio à violência. Expostos às mais difíceis situações, muitos (sobre)vivem sem saber o dia de amanhã, uma vez que podem não conseguir dinheiro para sustentar o vício e, assim, ser encontrado morto por conta de uma dívida qualquer.

Em meio aos entulhos espalhados pelo bairro Consil não é difícil visualizar pessoas com um cachimbo improvisado na mão. Muitos ficam agachados, conversando uns com os outros. Os assuntos chegam a ser incompreensíveis, sem foco. Outros preferem ficar calados em um canto. Sempre com o olhar perdido em algum lugar daquelas ruas.

Entre os falantes estava Wesley*.  Com mais dois amigos usuários, ele falava palavras descoordenadas. Entre uma risada e outra, houve uma contradição. “Isso aqui não é vida, não! Estou há mais de 20 anos nisso e minha família não me ajuda mais. Não está nem aí”, disse ele, disparando outra gargalhada, deixando amostra os dentes cariados devido à droga.

Não muito longe dali, outro usuário estava preparando a droga no cachimbo. Sozinho e encostado em um muro, Luciano* aparentava estar mais consciente. Logo que a reportagem chegou, ele alertou: “Gente, na boa. Não fiquem aqui. Aqui é cracolândia, é muito perigoso”. Após apresentar a identificação de estudantes, ele demonstrou interesse em falar.

Vindo de Lucas do Rio Verde, interior do Estado, o homem de 32 anos deixou a cidade para tentar uma nova vida na Capital. No entanto, o vício das drogas veio junto com os sonhos, que se desmoronaram em questão de tempo. “Faz 15 anos que uso droga. Já usei tudo que você imaginar, até chegar aqui. Comecei por conta de amizades erradas. Hoje minha família não fala comigo, mas também não me importo. Tenho uma filha de 12 anos, mas também não tenho mais contato”, disse ele.

Do outro lado da rua estava Raissa*. Com cabelos desgrenhados, queimados pelo sol, ela vagava pelas vias com um cachimbo em uma mão, e um picolé de morango em outro. Vestida com uma camisete branca suja, e um vestido roxo que servia como saia, ela tinha um semblante triste e perdido.

Aparentemente ‘chapada’, ela respondeu tranquilamente às perguntas da reportagem. Mesmo aparentando estar fora de si, ela demonstrou muita coerência e sentimento nas palavras. “Moça, vou falar uma coisa para você: aqui ninguém teve oportunidade na vida, nasceu já para cair nesse mundo. O povo sempre vem aqui e fala 'vai para uma clínica, frequente uma igreja'. Deus que me perdoe, mas é simples dizer quando você nasce com uma família boa, amigos e pessoas que te ajudam, além de autoestima e amor. Força de vontade é importante, mas o que eu vou fazer depois de curada? Sendo que não tenho estudo, trabalho, alguém pra confiar. Eu nasci de uma família pobre, perdi minha mãe com 14 anos e comecei a me prostituir muito cedo. Minha única escapatória é vir aqui, sair da realidade e esperar o que pode acontecer”.

Problema que deve ser tratado como doença

Embora seja algo evidente em usuários em situação de rua na Capital, o crack também é presente na vida de pessoas de quem mal desconfiamos. Jovens, trabalhadores e até pais de família sofrem com este tipo de problema. No entanto, a exposição à violência é vivenciada na mesma proporção entre os mesmos.

Em um último estudo, feito em 2014, a região Centro-Oeste ficou em 3º lugar no ranking de usuários de crack, com 0,98%. O território perdeu para o Sul, com 1,05%, e o Nordeste, com 1,29%. Nas regiões Norte e Sudeste, houve um registro de 0,68% e 0,56%, respectivamente.

A professora credenciada no programa de pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Delma Perpétua Oliveira de Souza, explica que usuários da droga não iniciam o vício através do crack. “O usuário de crack não usa diretamente o crack. Ela já tem o uso há muitos anos de outras substâncias”.

Segundo ela, a maior parte dos usuários é adulta, uma vez que se trata de uma droga mais forte. Ela avalia também que a maioria dos usuários busca este caminho devido a problemas pessoais, com isso acreditando que a droga pode preencher a ‘lacuna’ na vida de cada um. 

“É uma droga que a pessoa sente um prazer muito grande, de euforia, de bem-estar. A sensação de poder. Na hora em  que entra no organismo, o efeito é muito mais rápido do que a cocaína cheirada. Mas ao mesmo tempo acaba rápido também. Por isso que a pessoa tem que estar repondo as drogas”.

Apesar de haverem  casos extremos, Delma afirma que há cura. Ela avalia também que a dependência química se trata de uma doença, que deve ser tratada dia após dia por profissionais do ramo.

“Se percebe o uso excessivo de drogas e a pessoa é diagnosticada dependente, ela é considerada doente. Não é uma questão de comportamento, de dizer que a pessoa é ‘vadia’. A questão é que se trata de uma doença. Porque muitas pessoas já experimentaram e não ficaram dependentes. Quando há realmente um tratamento sério e acompanhado, as pessoas vão estar em tratamento. Elas podem recair, mas se elas estão em um efetivo tratamento, elas vão recair e voltar de novo para diminuir o consumo”.

Embora seja uma droga letal, o crack não é o maior responsável pela morte de boa parte dos dependentes químicos. “A maior parte dos óbitos registrados não é por causa da droga em si, mas, sim, da violência que há nas áreas do tráfico. Caso o usuário tenha dívidas com traficantes, ele pode pagar com a vida. Agora, devido ao uso, o índice é baixo”.

Programas de apoio aos usuários

Em Cuiabá existem  dois grupos de apoio aos usuários de droga. As coordenações de Apoio Psicossocial (Caps) que ajudam dependentes químicos a se livrar do vício atuam com o apoio de diversos profissionais em áreas específicas da saúde. 

A coordenadora de saúde mental, Daniele Bastos Novaes, disse que qualquer pessoa que queira receber tratamento pode procurar os serviços de atendimento para se  tratar dos vícios. “Trabalhamos com projeto terapêutico de forma singular para cada paciente que procura a consulta. Com habilidade psiquiátrica, enfermagem e serviço social, entre outros, para qualquer dependente químico que procure ajuda”.

As entidades pertencem ao governo do Estado e à prefeitura de Cuiabá. O atendimento é gratuito.

Denúncia – Atualmente o governo do Estado não possui nenhum programa de atendimento ao usuário de crack. Mas isso decorreu devido a um suposto desvio de verba pública pela antiga gestão da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh). 

Uma fonte informou que no ano passado o Estado foi contemplado com uma verba do programa federal ‘Crack, é possível vencer’. No entanto, o dinheiro sumiu durante a gestão do então secretário-adjunto Nestor Fidelis. O processo corre em segredo de Justiça.

Confira na integra a matéria de capa do Circuito Mato Grosso

Noelisa Andreola

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