Quando o dia amanhece, a diarista e porteira Sueli Domingos, de 39 anos, já está em pé. Moradora do Jardim Irene, na zona sul de São Paulo, a cada dois dias ela acorda às 4h30 para assumir, às 6h, a portaria do prédio onde trabalha, na região de São Judas, também na zona sul. Com carga de 12 horas diárias, Sueli só chega em casa por volta de 20h.
É a hora em que tem de encarar as tarefas domésticas, realidade para nove entre cada dez mulheres brasileiras, segundo a pesquisa “Trabalho feminino e vida familiar: escolhas e constrangimentos na vida das mulheres no início do século XXI”, desenvolvida no Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (Nepo) da Unicamp (Universidade de Campinas).
“Só vou dormir depois da meia-noite todos os dias porque tenho de deixar a casa arrumada, fazer comida para o jantar e para o almoço do meu filho [de 11 anos, que fica sozinho em casa]. Lavo o banheiro todos os dias porque tenho gato e cachorro. Há dias em que lavo e em outros passo a roupa”, enumera.
Por causa da jornada de 12 horas, Sueli tem direito a 36 horas seguintes de folga. Mas, em vez de descansar, ela “aproveita” esse tempo para engordar a renda familiar, faxinando até três apartamentos por dia, no mesmo prédio onde é porteira. A rotina estafante só cessa em um dia da semana.
Segundo a pesquisa, que utilizou dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) entre 2001 e 2012, mesmo que as mulheres cumpram jornadas de trabalho de 40 a 44 horas semanais, elas chegam a dedicar entre 20 e 25 horas semanais com cuidados com a casa e os filhos, como é o caso de Sueli. Quando estão desempregadas, a jornada de trabalho doméstico sobe para cerca de 26 horas semanais. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de desocupação (que inclui apenas pessoas que buscam emprego) entre mulheres foi de 7,7% no último trimestre de 2014.
“Atividades como limpar uma casa, faxinar, ir ao mercado e cuidar dos filhos demandam tempo, força física e geram muito estresse. Assim, as mulheres continuam sendo muito exigidas no seu papel familiar”, diz a cientista social e antropóloga Glaucia Marcondes, uma das responsáveis pelo estudo.
A pesquisa revelou ainda que entre 2001 e 2012 houve uma pequena queda no número médio de horas semanais dedicadas aos trabalhos domésticos. Segundo a pesquisadora, esse dado pode ser explicado pelo maior acesso das famílias a lava-roupas e micro-ondas, que podem facilitar o trabalho dentro de casa. Em 2001, os afazeres domésticos exigiam cerca de 34 horas semanais da mulheres desempregas e 24 horas no caso das ocupadas.
Homens X trabalho doméstico
O levantamento indicou ainda que, enquanto a maioria das mulheres com idades entre 16 e 60 anos realiza as tarefas domésticas, apenas quatro entre dez homens na mesma faixa etária ajudam em casa.
“Na questão do tempo de trabalho doméstico dos homens, a gente percebeu uma total estabilidade ao longo da década. Eles gastam em média 8 a 9 horas por semana. E isso independe da escolaridade, da classe social, se trabalha fora ou se está desempregado”, diz Glaucia. “A responsabilidade financeira feminina, muito mais consolidada nas famílias, dá à mulher um maior poder de barganha e gera uma maior participação masculina nas atividades domésticas. Mas ainda está longe do ideal”, explica Glaucia.
Representante da maioria dos homens, o marido de Sueli não a ajuda em casa, diz ela. “Ele limpa 15 piscinas por dia e diz que chega em casa muito cansado. Ele só toma banho, janta e vai dormir. Mas eu gostaria que ele me ajudasse mais”, confessa.
A exemplo da média de homens pesquisados, o marido da personal trainer Lilian Sampaio Halsz, de 35 anos, dedica cerca de dez horas semanais em cuidados com a casa e com a filha do casal, Pietra, de seis anos.
“Ele a coloca na perua de manhã para ir para a escola e à noite dá janta. Ele não cozinha, mas esquenta a comida, fica com ela”, diz Lilian.
Por causa da profissão, Lilian trabalha em horários alternativos: entre 6h e 11h e entre as 16h e 20h30. O tempo que sobra, ela utiliza para pegar a filha na escola, cuidar da roupa, cozinhar e arrumar a casa. “Tenho uma diarista, mas ela só vem duas vezes por mês. Ela faz o grosso, mas quem mantém a casa organizada no resto do tempo sou eu”, diz. Apesar de apreciar a atuação do marido como pai, Lilian diz que ele poderia participar mais das tarefas domésticas.
“Dono-de-casa”
Exceção à regra, o auxiliar de logística Ueslei Rodrigo da Silva, 33 anos, é responsável pela maior parte das atividades domésticas, para qual diz dedicar ao menos 20 horas semanais. Ele trabalha das 8h às 17h e, como tem uma carga horária semanal menor que a da esposa, a designer gráfica Viviany Pereira de Lima, 32 anos, que trabalha das 12h às 22h, é ele quem busca o filho Enzo, 3 anos, na escola, dá banho, alimenta e o coloca para dormir. Enquanto o menino dorme, diz Silva, ele aproveita para arrumar a casa.
“Eu a ajudo para conviver bem dentro de casa, ter um ambiente saudável para o meu filho e manter as coisas organizadas. Desde pequeno sou assim. Minha mãe e minha avó sempre trabalharam fora e meu irmão e eu tínhamos de fazer tudo”, conta. Entre as tarefas domésticas, Silva diz não gostar de lavar louça e nem de limpar o chão. “Gosto de cozinhar, embora eu não ache que faça muito bem”, brinca.
Diferente da maioria das mulheres, quando Viviany chega em casa, por volta das 23h, ela encontra a comida pronta. Apesar de ser um cenário de sonho para a maioria das mulheres, Viviany diz que gostaria de participar mais das atividades do lar.
“Preferia fazer as coisas de casa, pegar meu filho na escola, cuidar mais da minha família. Até falei para o meu chefe que esse horário não é bom para uma mãe de família”, diz Viviany.
Para a socióloga Glaucia Marcondes, o pensamento da designer reflete uma questão social ainda muito arraigada no Brasil.
“Mesmo que as mulheres estejam ampliando espaços sociais, estejam nas universidades e até com níveis de instruções maiores que os homens, inclusive conquistando espaços que até há pouco tempo eram unicamente masculinos, a expectativa social é que o espaço domestico seja dominado por elas. Para uma mulher, é difícil abrir mão desse ‘reino’”, diz. “Culturalmente, a gente acaba reforçando a ideia de que a mulher é melhor para cuidar da criança e o homem para dirigir. Mas a gente vê que isso está mudando”, conclui a pesquisadora.
Regiões metropolitanas
A pesquisa também analisou as diferenças na realização de trabalhos domésticos entre homens e mulheres nas regiões metropolitanas de São Paulo, Salvador, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Belém, Recife, Rio de Janeiro e Fortaleza.
Em quase todas elas, segundo a pesquisa, o nível de participação masculina nos afazeres domésticos aumentou entre 2001 e 2012. Nas regiões de Salvador, Belo Horizonte e Porto Alegre, mais de 60% dos homens declaram ajudar em casa. A Região Metropolitana do Rio de Janeiro, no entanto, registra a menor proporção masculina, ficando abaixo dos 40% nos dois períodos analisados.
Já entre a participação feminina, a pesquisa concluiu que as paulistas faziam menos tarefas em casa em 2012 do que em 2011. A pesquisadora explica que as paulistas têm mais acesso ao emprego formal, rendas maiores e menor número de filhos. Já em Salvador, única região onde a taxa de trabalho doméstico feminino subiu, o fato de ter mais filhos e menor taxa de ocupação faz com que as baianas dediquem mais tempo aos afazeres domésticos (veja o gráfico abaixo).
“Em Salvador e Recife, a sobrecarga feminina é maior. Mas, individualmente, não quer dizer que elas estejam trabalhando mais. Salvador, por exemplo, é uma metrópole de mulheres. Tem esse aspecto cultural de ter muitas mulheres em uma mesma casa e uma rede formada por parentes, vizinhas, que podem ser acionadas para equacionar a demanda da casa. Em São Paulo, tem menos mulheres no domicílio e não tem como dividir”, explica Glaucia.
Fonte: iG