Dez anos após a tragédia que deixou 194 mortos em uma boate de Buenos Aires, em 2004, a mãe de uma das vítimas realizou um sonho que seu filho não teve tempo de concretizar: concluir a formação em Direito.E esta foi apenas uma das mudanças radicais na vida de Nilda Gómez, de 57 anos, cujo niño Mariano tinha 20 anos de idade quando faleceu no incêndio da discoteca República de Cromañón, no bairro de Once, na capital argentina.Desde a tragédia, ela estudou, se formou, doou um rim para a outra filha (que tem problemas de saúde), participou da fundação de uma ONG para ajudar outros pais que perderam filhos e adotou um filho.
O incêndio ocorreu na noite de 30 de dezembro daquele ano. Cerca de 4 mil pessoas não conseguiram deixar a boate em meio à fumaça provocada por fogos de artifício. Os rojões foram lançados dentro do local por integrantes da banda Callejeros e por seus fãs.A porta havia sido trancada por ordem do empresário e gerente Omar Chabán, que morreu na semana passada, segundo a imprensa local.
Santa Maria
O caso foi relembrado no Brasil no ano passado, quando um incêndio similar em uma discoteca em Santa Maria (RS) matou 242 pessoas. A tragédia da boate Kiss, que ocorreu na madrugada de 27 de janeiro de 2013, também deixou mais de 650 feridos."Minha vida mudou muito desde aquela noite", disse Nilda Gómez em entrevista à BBC Brasil. Ela e o filho estudavam na mesma universidade e tinham o hábito de se reunir com frequência para falar sobre as matérias e a vida em geral.Ela era inspetora de administração e gestão educativa e fazia mestrado em Educação na mesma universidade em que o filho fazia Direito, a Universidade Católica de Salta, em Buenos Aires.
"A morte do meu niño (menino) mexeu demais comigo. Decidi estudar para realizar o sonho dele e porque eu tinha e tenho muita curiosidade para entender o que ocorreu, e quero ajudar os outros pais que também perderam seus filhos", disse, por telefone.A sua monografia do curso de Direito foi sobre a diferença entre acidentes e casos que podem ser evitados. Ela disse que escolheu o tema porque a tragédia da discoteca foi definida pela Justiça como acidente, e que os responsáveis, afirmou, só foram processados e presos porque os pais protestaram e conseguiram provar que havia ocorrido irregularidades que permitiam o funcionamento da boate entre elas, o pagamento de propinas a policiais e autoridades municipais.
A notícia de que o caso foi definido como "acidente" foi informada pela agência oficial Telam e jornais argentinos. "Se a investigação tivesse ficado limitada a acidente, os responsáveis não teriam sido presos. Com nossos protestos, com nossos apelos à Justiça, conseguimos mostrar outras irregularidades", disse.
Adoção
Naquela noite, Mariano tinha ido à discoteca com seu amigo de infância, Gustavo, que também morreu. "Ainda hoje, nós, pais das vítimas, somos muito unidos. Foi por meio de uma das famílias da Cromañón que eu soube que um menino de 8 anos precisava de uma família", disse.Ela contou que decidiu adotar o menino, Jorge Luis, o Jorgito, após ter tido uma "visão" do filho Mariano."Eu estava muito agitada. Um dia, estava dirigindo em alta velocidade quando claramente vi meu filho fazendo um gesto para eu ir mais devagar na vida."
Uma semana depois, contou, amigos entraram em contato com ela sobre o menino, que morava em uma área rural da província de Corrientes. Ela e o marido foram de carro até o local e buscaram o garoto.No dia da entrevista à BBC Brasil, ela afirmou estar "muito feliz" porque o agora adolescente tinha passado de ano na escola."Jorgito nunca tinha estudado antes de vir para nossa casa. Ele vai muito bem na escola e hoje nos trouxe essa alegria. Aprovado em tudo."Nilda Gómez é presidente da ONG Famílias por la vida, que tem uma das sedes a uma quadra do "santuário" como os familiares chamam a antiga discoteca onde os tênis dos jovens que morreram naquela noite ficaram pendurados em cordas e fios improvisados em frente ao local.
A ONG, contou, já ajudou outros pais de famílias que perderam seus filhos não somente em Cromañón.Para Nilda, ter estudado a carreira que o filho queria, trabalhar na ONG e ter adotado Jorgito lhe deram novo sentido à vida."Desde aquele dia vivemos em busca de fazer justiça por eles e de manter a memória (para que a tragédia não caia no esquecimento). Mas naquele dia que tive a visão do meu filho entendi que precisava de mais razões para viver."
G1