Opinião

NA UPPER

Meu primeiro contato com o cinema aconteceu em Londres. Era uma época em que discutíamos muito sobre questões fundamentais, tais como a morte da bezerra, que o Lula ia acabar com o Brasil, o Arsenal havia contratado Patrick Vieira. Havíamos acabado de chegar em solo londrino. Menos de um mês, para falar a verdade. Ainda fazíamos questão de comprar jornal e ler tomando café, como todo bom londoner (pelo menos é o que achávamos, porque quem mora em Londres lê o jornal em transporte público). Nossa primeira morada na cidade do Big Ben não poderia ser melhor: o flat da Maira, prima do Geleia, meu fiel escudeiro, em pleno bairro de Angel. Angel era um dos poucos bairros ainda com estilo londrino. Na época, hoje já não é mais. Na Upper Street havia vários cafés muito movimentados, com as calçadas lotadas de gente com o melhor do estilo. Sempre escolhíamos um longe do Starbuck’s e mais perto do Medicine Bar. Um palácio desconhecido no meio da realeza inglesa. Afinal, não mudamos de continente para tomar café americano.

– Colombiano. O café do Starbuck’s é colombiano. Se bobear, até Pablo Escobar tem ações dessa empresa – falo mexendo minha pint, um copo de cerveja enorme tradição nos pubs.

– Como você sabe? Ali tá escrito American taste. Eles, esses americanos, devem escravizar ex-cocaineiros em suas fazendas oligárquicas – dispara o honorável Geleia.

– Caraca, Geleia, são quarter past 2. Vamos perder a aula.

Jogamos 5 libras na mesa, pegamos as mochilas e deitamos o cabelo. Sempre caminho cabisbaixo. Mas quando estou com pressa, abaixo a cabeça ainda mais. Saímos como dois pré-adolescentes voando pela Upper Street, caminhando apressados e superatrasados para a aula de inglês. Paranoico com os estudos e com os bons costumes, ia quase correndo na frente, chamando meu camarada como quem chama um soldado correndo em volta do quartel. Olhei para trás e noto que Geleia, mesmo sendo moreno, estava branco como leite, parado. Estático. Quando resolvo olhar pra frente, um choque inevitável. Caio no chão.

– Fucking Hell!!! – disparo com o melhor sotaque inglês.

A pessoa nem olha para a minha cara.

Atordoado, começo a olhar para lados e noto que na realidade estava no meio de uma roda. Olho pra frente, um cartaz enorme com uma loira estonteante. Olho pra cima, vejo um letreiro: Kill Bill 1. Olha pra rua, vejo a loira do cartaz!!! Passa um cara cheio de espinhas pulando desajeitado, minhas pernas, e em minha frente, o carcamano em que bati me olhando com cara de nojo: Quentin Tarantino. Eu estava estatelado no chão na frente do cinema onde estava sendo realizada a premier do filme.

Não por acaso todos dizem que sempre fui um cara de sorte.

 Na época reclamei. Agora entendo a magnitude daquele encontro. 

Eu e Quentin.

Hoje, não teria, nunca mais, lavado meu casaco.

João Manteufel Jr.

About Author

Mais conhecido como João Gordo, ele é um dos publicitários mais premiados de Cuiabá e escreve semanalmente a coluna Caldo Cultural no Circuito Mato Grosso.

Você também pode se interessar

Opinião

Dos Pampas ao Chaco

E, assim, retorno  à querência, campeando recuerdos como diz amúsica da Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul.
Opinião

Um caminho para o sucesso

Os ambientes de trabalho estão cheios de “puxa-sacos”, que acreditam que quem nos promove na carreira é o dono do