Circuito Cinema

Walter Salles lança documentário sobre o cineasta Jia Zhang-ke

Em meados dos anos 1980, Walter Salles coproduziu para o irmão João a série “China, o Império do Centro”, exibida na extinta TV Manchete, e que revelou o país asiático para o espectador brasileiro. O autor de “Central do Brasil” (1998) não imaginava que, décadas depois, voltaria à região ciceroneado pelo cinema de Jia Zhang-ke, realizador de 44 anos que tem registrado as constantes transformações daquela parte do mundo em filmes como “Um toque de pecado” (2013). O resultado da admiração do brasileiro pela obra do chinês está resumido em “Jia Zhang-ke, um homem de Fenyang”, que faz sua estreia hoje na 38ª Mostra de Cinema de São Paulo (às 20h, no Cinesesc).

O documentário acompanha Zhang-ke nas principais locações de seus filmes, como Fenyang, cidade natal do realizador, onde filmou seus três primeiros longas, “Pickpocket” (1997), “Plataforma” (2000) e “Prazeres desconhecidos” (2002). É o próprio Zhang-ke quem convida a equipe do brasileiro a conhecer a sua história pessoal, que se mistura com a realidade dos personagens de seus filmes. Na entrevista a seguir, Salles descreve as origens do projeto, nascido de uma troca de ideias entre os diretores da Mostra de Cinema de São Paulo, Renata de Almeida e Leon Cakoff (morto em 2011, e a quem o filme é dedicado), e o crítico de cinema Jean-Michel Frodon, que assina com o diretor o livro “O mundo de Jia Zhang-ke” (Cosac Naify), também lançado no festival.

Você acompanha a carreira de Zhang-ke há quanto tempo? Em que momento percebeu que estava diante de um cineasta singular?

Desde muito cedo, por uma feliz coincidência. No mesmo ano em que “Central do Brasil” passou em Berlim, em 1998, Jia Zhang-ke estreava seu primeiro filme no festival. Era “Pickpocket”. Desde o início, ficou claro que Jia era um dos poucos cineastas capazes de refletir com profundidade sobre as contradições do mundo — de um ponto de vista cinematográfico, social, estético e existencial. E me apaixonei por “Plataforma”, seu segundo filme, que acompanha uma trupe de jovens atores de teatro no norte da China, de 1979 a 1989. Como todos os grandes filmes, “Plataforma” congrega diversos temas: é um filme dilacerante sobre os anos de juventude e a passagem para a idade adulta, sobre desejos e sonhos não cumpridos, e também sobre um país vivendo uma transformação brutal. Era o momento em que a China trocava a ortodoxia maoista para outro tipo de ortodoxia, a do mercado. Depois de “Plataforma”, acompanhei cada filme de Jia, e cada um provava que estávamos frente a um cineasta maior.

De que forma o trabalho de Zhang-ke se distingue do de outros realizadores chineses da mesma geração?

Na primeira vez em que tive oportunidade de entrevistar Jia Zhang-ke, na Mostra de SP, em 2008, perguntei a ele quem eram os diretores que o haviam instigado a ser cineasta. Jia respondeu: “Antonioni me ensinou o que é o espaço no cinema, Bresson, o tempo, e Hou Hsiao-Hsien, a importância do cotidiano na construção de um filme”. O cotidiano no qual Jia se inspira é o de Fenyang, no norte da China, perto da fronteira com a Mongólia. É desse oceano humano tão específico que são feitos seus filmes, e é ele que os torna tão expressivos e particulares. Por isso, é difícil compará-lo aos outros realizadores chineses ou mesmo ocidentais.

Enxerga alguma afinidade entre o seu trabalho e o de Zhang-ke? Ou sua admiração pela obra do chinês tem origem em outro sentimento?

O desejo de fazer o documentário e o livro que o acompanha parte do entendimento de que Jia Zhang-ke se tornou o realizador mais importante em atividade, depois de “Em busca da vida” (2006). Há outra razão para isso: os filmes de Jia trazem o cinema de volta para o centro do debate. Ouvimos constantemente que a internet ou mesmo minisséries são hoje o reflexo mais imediato do mundo em que vivemos. Jia nos lembra de que não, que o cinema é essencial, um potente instrumento de compreensão do mundo. Se há uma obra capaz de explicar a China em sua complexidade hoje, é a de Jia.

O documentário leva Zhang-ke a locações que ele usou em seus filmes, muitas delas ligadas à sua própria história. Como chegou a esse conceito?

Essa premissa veio da percepção de que o mundo dos filmes de Jia é extremamente particular. O dialeto no qual os personagens falam, a geografia física e humana do norte da China, os rostos da cidade de Fenyang, a gestualidade tão específica àquelas pessoas, a temperatura do ar. Era necessário mergulhar em Fenyang para melhor entender essa obra. Por outro lado, Jia é um cineasta que, com seus filmes, registra a memória de um tempo de relações aceleradas, brutais. Pareceu-me interessante convidá-lo a voltar aos locais onde realizou seus filmes, e criar a superposição entre uma memória coletiva que ele registra e a memória pessoal do cineasta. O filme é o resultado dessa confluência.

Qual filme de Zhang-ke é o seu preferido e por quê?

A obra de Jia é essencialmente coerente, um filme ecoa no outro. É difícil distingui-los porque fazem parte de um todo indissolúvel. Mas, se for para escolher, talvez fique com “Plataforma”, habitado pelo desejo que ele tinha de contar ao seu pai como haviam sido seus anos de juventude. Esse desejo torna o filme extremamente pessoal, e ao mesmo tempo tão comovente.

Quantas viagens você e sua equipe fizeram à China para acompanhar Zhang-ke? O país que você encontrou é o que vemos nos filmes dele?

A ideia foi acompanhar Jia em uma única e intensa viagem, com uma equipe pequena, mas apaixonada. Ao voltar às locações de seus filmes, começamos a perceber os indícios dessa transformação brutal que o país viveu, tão presente em “Em busca da vida”, “24 City” (2008) e “Um toque de pecado”. Se há uma obra na qual a realidade e o cinema se confundem, é a de Jia. Mas ele sabe da importância de transcender essa realidade. Um exemplo são os prédios em demolição que alçam voo em “Em busca da vida”. A realidade daquelas antigas cidades sendo destruídas já era em si surrealista, e Jia levou essa percepção ainda mais à frente. Esse é outro aspecto do seu trabalho que me parece fascinante: o desejo de nunca trabalhar em uma zona de conforto, de sempre buscar formas narrativas que ainda não experimentou.

Você começou fazendo documentários e volta a eles esporadicamente. Como se relaciona com o gênero?

Pra mim é fundamental voltar ao documentário entre duas ficções. É o lugar de experimentação por excelência. Você pode seguir seu instinto, trabalhando com equipes pequenas, que permitem filmar com uma liberdade cada vez mais rara em ficção. Sonho com o tempo do Cinema Novo ou da Nouvelle Vague, em que as equipes de ficção tinham 15 pessoas. Hoje, o mesmo filme seria feito por 40, 50 pessoas. Isso engessa o cinema de ficção. Sobra o documentário como um território onde você consegue realmente se expressar.

Seu trabalho mais recente é “Na estrada” (2012), que gerou também um documentário ainda não lançado. Já tem planos para um novo filme?

Estou trabalhando em dois projetos. Sonho trabalhar novamente com Fernanda Montenegro, a maior atriz com quem tive o privilégio de colaborar. E com Gael García Bernal, com quem vivi a experiência única de filmar “Diários de motocicleta” (2003). Cinema é um ofício complexo, e ele passa a valer a pena quando é feito por uma família. Penso que começamos a fazer cinema quando esquecemos que somos, justamente, uma equipe filmando. Com uma família coesa, chega-se mais facilmente a esse raro estado.

O Globo

Redação

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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