"Essas pessoas trabalharam de junho a agosto sem salário nenhum, só recebiam moradia e comida", afirmou a auditora fiscal Elizabete Sasse, coordenadora da ação que libertou 12 haitianos (7 mulheres e cinco homens) e um casal de bolivianos em uma oficina no bairro do Brás, zona leste de São Paulo – as condições de trabalho foram denunciadas pelo Sindicato das Costureiras. "Eram jornadas de trabalho de 11h a 14h diárias, ambiente e moradia no mesmo espaço, fiação exposta, extintores de incêndio vencidos, botijões de gás em ambiente fechado, um cenário de risco total."
Contratados no dia 5 de junho por uma oficina terceirizada à empresa varejista de pequeno porte As Marias, os 14 trabalhadores receberam, nos dois meses no local, apenas R$ 100 – e só quando exigiram um pagamento depois de quase dois meses de serviços prestados, no dia 31 de julho. "A partir daí, a oficinista resolveu não fornecer mais alimentação. Ou seja, foram cinco dias, entre o pagamento esdrúxulo e a inspeção, em que eles ficaram sem comida, o que também configura maus tratos."
Devido à falta de pagamentos, todos os trabalhadores acabaram obrigados a viver no local. E se as condições de trabalho não eram nada boas, o mesmo pode ser dito a respeito de seus dormitórios. "Os quartos eram precários, com ventilação insuficiente, ambiente sujo, com restos de alimentos, mofo nas paredes, infiltrações, colchões no chão e sem roupa de cama, divisórias de madeira", enumerou Sasse.
A oficina foi fechada no mesmo dia da inspeção. Foram emitidos 14 seguros-desempregos para os trabalhadores e a empresa responsável pelo pagamento da oficina terceirizada se comprometeu a dar cestas básicas aos empregados e a lhes fornecer as rescisões contratuais – que, somadas, passam de R$ 56 mil.
Escravos do século XXI
Se o caso do início do mês chamou a atenção por seu ineditismo, outra operação realizada na capital paulista no mês passado apenas reforçou a triste realidade que segue assombrando o País. No dia 17 de julho, foi descoberta e fechada uma oficina que empregava 17 trabalhadores bolivianos – oito homens, oito mulheres e uma menina de 15 anos, grávida de sete meses -, todos em condições de trabalho análogo à escravidão.
Gerenciada por um casal de bolivianos em condições igualmente degradantes às dos outros funcionários, os trabalhadores recebiam cerca de R$ 500 mensais – 30% do salário médio de costureiros no Estado – e viviam em condições igualmente insalubres, em uma oficina com moradia contígua no bairro do Mandaqui, na zona norte da cidade.
Neste caso, a oficina era terceirizada à Confecções de Roupa Seiki Ltda, empresa com sede no Bom Retiro de propriedade de brasileiros de ascendência coreana. "As condições eram degradantes, principalmente os alojamentos: insalubres, com instalações sanitárias indignas, deploráveis; sem água potável ou alimentação suficiente", disse o coordenador da operação de inspeção, Luiz Alexandre Faria. "Além disso, os documentos pessoais, como carteira de trabalho e mesmo o registro geral, eram retidos pelo oficinista, o que já configura o trabalho análogo à escravidão."
Assim como no caso dos haitianos, os trabalhadores foram cooptados pelos oficinistas na Missão Paz, entidade ligada à Igreja Nossa Senhora da Paz que acolhe migrantes, imigrantes e refugiados em situação de dificuldades. "O Ministério do Trabalho vai notificar de forma preventiva as mais de 130 empresas que passaram pela Missão para falarmos sobre direitos e deveres para evitar problemas futuros", afirmou o coordenador das ações contra o trabalho escravo do SRTE-SP, Renato Bignami. Ele lembrou que o número de imigrantes tem crescido no Estado, o que também acaba levando a mais casos semelhantes – só no posto ao lado da sede do SRTE foram 2,2 mil carteiras de trabalho emitidas a haitianos desde abril.
Os proprietários da Seik pagaram as indenizações aos trabalhadores, que no total chegaram a R$ 294 mil.
Erradicando a escravidão
"Desta forma, os processos serão acelerados, se tornam prioridade do STRE. Consolidada a multa pela prática, ao fim do processo administrativo enviamos a denúncia à Secretaria Estadual da Fazenda para, assim, realizar a cassação", disse Medeiros. A previsão é de que em no máximo um ano e meio as empresas que cometeram o crime após a aprovação da Lei Estadual sejam devidamente punidas – bem como seus proprietários, presos. Só neste ano, 15 operações semelhantes às duas reveladas nesta sexta foram realizadas.
"O cerco está se apertando. O trabalho escravo é uma vergonha nacional que não pode continuar. Ainda mais no Estado mais desenvolvido da nação", concluiu ele.
iG