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Outro Debret, outro Brasil

Um dos primeiros quadros que o visitante observa na exposição Debret em Questão – Olhares Contemporâneos, no Museu do Ipiranga, é Floresta Virgem do Brasil, gravura de 1822 do francês Charles Clarac (1777-1847) que retrata uma visão idealizada do Brasil: uma família de nativos caminha por um tronco em meio a um cenário de natureza exuberante.

Ao lado dessa obra, está uma releitura dela feita por Jean-Baptiste Debret (1768-1848) em 1834. Na gravura, a família indígena está com as mãos amarradas, sendo conduzida por três homens armados.

A escolha da curadoria para a abertura da mostra é um jogo com a proposta da própria exposição: o que Debret fez com seu contemporâneo é também o que 21 artistas contemporâneos fazem agora a partir de seu trabalho. A mostra reúne – além de imagens emblemáticas de Debret – releituras irônicas, críticas ou que trazem sua visão para a atualidade.

A ideia partiu do livro Rever Debret: Colônia – Ateliê – Nação (Editora 34; tradução de Samuel Titan Jr.), publicado em 2023, no qual o pesquisador francês Jacques Leenhardt, para propor novas visões do Brasil e das cicatrizes que permanecem na nossa sociedade, revisita a obra de Debret e faz um panorama da maneira como suas obras seguiam sendo ressignificadas por artistas em ascensão.

“Quando o livro ficou pronto, olhamos para aquilo tudo e percebemos que era um material potente e bastante pertinente ao nosso tempo. Ficamos muito felizes com o resultado e com vontade de transformá-lo em uma exposição, para que ganhasse outro formato e chegasse a mais gente”, explica a jornalista Gabriela Longman, que editou o livro de Leenhardt e assina a curadoria da mostra ao lado do pesquisador.

A dupla estava começando a desenhar o projeto quando descobriu que 2025 seria o ano da Temporada Brasil-França, uma feliz coincidência. Correram para montar a exposição, que foi apresentada primeiramente entre março e outubro na Maison de L’Amérique Latine (Casa da América Latina), centro cultural em Paris.

“É a mesma exposição, mas são versões diferentes”, diz Gabriela. “O Debret não é conhecido na França, então houve esse trabalho extra por lá: apresentá-lo a esse público, para depois falar dos artistas contemporâneos. Aqui é o contrário: temos essas imagens que foram vistas à exaustão, principalmente nos livros didáticos, e partimos de uma outra realidade na qual as questões colocadas por Debret ainda estão muito mais próximas do que se imagina, vivas e pungentes.”

A exposição chega ao Brasil, portanto, com um contexto diferente e ampliado. As condições de conservação do Museu do Ipiranga permitiram que a mostra incluísse 35 pranchas de gravuras originais de Debret, provenientes da obra Voyage Pittoresque et Historique au Brésil ( Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, 1834-1839) Elas não estavam na versão parisiense.

Conforme explica Gabriela, as gravuras foram emprestadas pelos acervos da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin – USP, do Itaú Cultural e do Instituto Moreira Salles (IMS) e organizadas em núcleos temáticos que ajudam a contar a trajetória de Debret no Brasil até a releitura dos artistas contemporâneos.

Corte e rua

Jean-Baptiste Debret chegou ao Brasil em 1816 como pintor oficial da corte luso-brasileira. Seu trabalho era registrar a monarquia, mas seu interesse maior era pela vida cotidiana do Rio de Janeiro.

Como projeto pessoal, Debret retratou os costumes da população carioca, a vida das pessoas escravizadas e as violências que testemunhava nas ruas. Em Debret au Travail ( Debret no Trabalho), o visitante vê um dos poucos autorretratos do artista: sentado na sarjeta, ele registra o que vê em um caderno de esboços apoiado nos joelhos.

“É esse material que vai dar origem ao livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, que é o material sobre o qual vamos trabalhar aqui, basicamente”, explica Gabriela. Editado entre 1834 e 1839, o livro foi publicado na França com textos e 152 gravuras originais do período em que o artista viveu no Brasil.

A obra foi um fracasso nas livrarias francesas e rejeitada pela Biblioteca Imperial do Brasil, que recebeu uma cópia como um presente. As imagens de Debret foram consideradas excessivas pela comissão responsável pelas aquisições, já que faziam um retrato claro da escravidão e iam na contramão da imagem que desejavam expor do País, mesmo (ou principalmente) após a Proclamação da República.

“Ele é um artista que tem um olhar sobre coisas que outros não viam ou não queriam ver. E é por isso que o livro vai incomodar tanto”, diz a curadora.

Estadão Conteudo

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