Jurídico

Estaria mesmo o ministro Gilmar Mendes errado?

No dia 3 de dezembro o ministro Gilmar Mendes deferiu medida liminar em duas arguições de descumprimento de preceito fundamental propostas pelo partido Solidariedade (ADPF 1.259/DF) e pela Associação dos Magistrados Brasileiros (ADPF 1.260/DF), em face dos arts. 39, itens 4 e 5; 41; 47; 54; 57, “a” e “c”; 70; 73 da Lei do Impeachment (Lei 1.079/1950); bem assim do art. 319, VI, do Código de Processo Penal e do art. 236, § 1º, do Código Eleitoral.

A partir daí começaram as críticas incisivas, ácidas e até mesmo rudes de vários membros do Congresso Nacional, cada um a seu modo defendendo se tratar de um grave ataque as prerrogativas e atribuições do Poder Legislativo. Será mesmo? Acredita-se que não. Afinal de contas, no que interessa a essa opinião escrita, a liminar deferida simplesmente delimitou que: (a) somente o Procurador-Geral da República pode formular denúncia em face de membros do Poder Judiciário pela prática de crimes de responsabilidade; (b) definiu o quórum de 2/3 (dois terços) para aprovação do parecer de impeachment; e (c) desautorizou enquadrar o mérito de decisões judiciais como conduta típica para efeito de crime de responsabilidade.

Como se observa, nada alterou a decisão liminar sobre as atribuições constitucionais do Congresso Nacional em ser o juiz natural do processo de impeachment, ajustando apenas o conjunto de leis questionadas ao que dispõe a atual Constituição da República Federativa do Brasil. Salvo engano, a Constituição a que se refere foi confeccionada pelo Congresso Nacional e seus membros juram defendê-la ao tomar posse. Na verdade, a decisão é uma aula sobre o que é constitucionalismo abusivo e legalismo autoritário, o que por certo levará a crítica de que foi um ato de defesa judicial da Suprema Corte feito por seu decano, tendo em vista a polarização e o estado de beligerância amplificado pelo “processo da tentativa de golpe” e suas condenações a autoridades civis e militares de alta patente.

Não somente quem estuda direito sabe que a integridade das instituições democráticas depende, de maneira fundamental, da existência de mecanismos de controle capazes de limitar abusos de poder e garantir o respeito à Constituição. Agrade ou não, um desses mecanismos se assenta no Poder Judiciário, cuja função de julgar, quando provocado, os agentes políticos e o controle da constitucionalidade, é indispensável para a preservação do Estado Democrático de Direito. Mas, do jeito que estamos hoje no país, numa erosão institucional, com estratégias de manipulação das estruturas judiciais ou de desqualificação de seus membros, é fato que tudo isso pode comprometer profundamente a capacidade do Poder Judiciário de exercer suas funções constitucionais.

Essas práticas, quando sistematizadas, realmente configuram o chamado constitucionalismo abusivo, fenômeno que ameaça a própria ordem democrática quando ataca diretamente o Poder Judiciário. Afinal, a sua posição singular dentro do arcabouço institucional, como instância técnica e independente dos ciclos políticos, serve como norte de impedir que decisões governamentais ou legislativas contrariem princípios constitucionais fundamentais, direitos humanos ou os limites previamente estabelecidos pela Constituição. Além disso, o Poder Judiciário funciona como garantia contra arbitrariedades, assegurando que nenhum cidadão ou agente político ultrapasse os contornos da legalidade.

As práticas de manipulação institucional engendradas por maus políticos que buscam consolidar poder sem romper de forma explícita com a ordem constitucional são sutis e passam pelas mudanças na composição dos tribunais, modificações nas regras de nomeação ou aposentadoria de magistrados e intervenções administrativas destinadas a influenciar decisões. Seguem ainda uma estratégia retórica que busca enfraquecer a credibilidade das cortes perante a opinião pública, criando um ambiente propício para reduzir sua influência. Por fim, vem as alterações legislativas ou constitucionais, onde os governos podem limitar o alcance do controle de constitucionalidade, reduzindo a capacidade das cortes de atuar sobre temas sensíveis.

Note-se que todas essas iniciativas ocorrem de forma gradual, o que dificulta a percepção imediata da erosão institucional pela opinião pública, que quando for dar conta disso estará sem a salvaguarda do Poder Judiciário para garantia de seus direitos mínimos e fundamentais. A manipulação das estruturas judiciais, quando bem-sucedida, neutraliza a função julgadora, que nas instâncias superiores, como se sabe, é contramajoritária, transformando o magistrado que ocupa o cargo em órgão complacente com interesses políticos específicos. Sem um Poder Judiciário forte e independente, direitos fundamentais se tornam vulneráveis e políticas públicas podem ser moldadas exclusivamente por interesses circunstanciais não republicanos.

A preservação da democracia exige vigilância permanente da sociedade sobre tentativas, explícitas ou veladas, de enfraquecer o Poder Judiciário. Manipular suas estruturas ou desqualificar seus membros, ameaçar com processos de impeachment sem respeito a Constituição em vigor significa, em última instância, eliminar um dos pilares do Estado Democrático de Direito. O constitucionalismo abusivo citado na decisão do Supremo Tribunal Federal, que agora é tão hostilizada pelos interessados em amordaçar o Poder Judiciário, opera justamente nessa zona cinzenta entre a legalidade formal e a erosão prática das garantias democráticas.

Assim, garantir a autonomia judicial, fortalecer mecanismos de controle e promover a cultura democrática são passos indispensáveis para impedir que práticas autoritárias se consolidem mediante o abuso de instrumentos constitucionais. Daí que o Poder Judiciário, enquanto guardião da Constituição, deve ser protegido não apenas de contra-ataques diretos, mas também contra estratégias insidiosas que buscam minar sua legitimidade e sua efetividade, caso das rotineiras ameaças de impeachment aos ministros do Supremo Tribunal Federal. Com a liminar, as regras passam a estar alinhadas aos ditames da Constituição Cidadã, e o ministro Gilmar Mendes agiu corretamente ao assim estabelecer.

Antonio Horácio da Silva Neto

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Antonio Horácio da Silva Neto é juiz de direito do Tribunal de Justiça de Mato Grosso e presidente da Academia Mato-grossense de Magistrados. Colaborador especial do Circuito Mato Grosso desde 2015.

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