Enquanto o comércio tradicional enfrenta a concorrência do digital e luta para manter as portas abertas, as padarias paulistanas atravessam o momento de transformação com uma estratégia peculiar. O foco é inovar sem abandonar seu maior trunfo, a capacidade de criar vínculos emocionais.
Proprietários e gestores de estabelecimentos da capital e região metropolitana compartilham uma visão comum sobre o futuro do negócio. A resposta para os desafios contemporâneos está menos na tecnologia em si e mais na forma como ela pode potencializar o que já funciona há décadas.
“As padarias seguem relevantes porque vão além da venda de produtos: elas representam um ponto de encontro, de convivência e afeto”, diz Fernando Cunha, da Casa Cunha.
É uma síntese do paradoxo que o setor enfrenta: num mundo onde tudo pode ser resolvido por aplicativo, o que mantém as pessoas atravessando a rua para comprar pão?
A resposta está justamente no que a internet não consegue replicar. “Só nas padarias vão te atender pelo nome, vão saber customizar o pedido”, explica Gustavo Guimarães Fernandes, da Panificadora Ceci. “Aqui se fala de novela, política, futebol. É onde as pessoas buscam se encontrar.”
Patrícia Oliveira, da Bella Paulista – uma operação que funciona 24 horas nos Jardins e que foi reconhecida recentemente pelo Prêmio Paladar -, vai além. “As pessoas continuam buscando experiências reais: o café fresquinho, o pão saindo do forno, o ambiente que acolhe e representa o jeito de viver do paulistano”, diz.
Mas não se engane: essa defesa do humano não significa resistência ao digital. Ao contrário.
A grande virada estratégica das padarias nos últimos anos foi compreender que tecnologia e acolhimento não são antagônicos, mas complementares. “Hoje em dia, facilmente, você vê uma padaria no iFood. Eu acredito que já seja a maioria”, diz Matheus Bernardo, proprietário das padarias Vila Carmela e Água Azul, em Guarulhos.
Mas a transformação vai muito além do delivery. Bernardo descreve um cenário de mudança geracional.
“Quando as padarias começam a estar mais presentes em aplicativos de delivery, quando o pedido é um QR Code na mesa, um tablet, e para levar o serviço já é um robô, isso atrai não só a curiosidade das crianças, mas ela entende que aquele mundo também é dela”, explica Bernardo.
A geração criada entre telas encontra nas padarias informatizadas um ambiente menos intimidador que o balcão tradicional, onde era preciso verbalizar o pedido para um adulto desconhecido. O tablet na mesa democratiza o acesso.
Rui Gonçalves, presidente do Sampapão, entidade representante do setor em São Paulo, confirma a tendência. “Hoje há padarias colocando robôs, o que acaba sendo um chamariz, além de facilitar o atendimento. Caixas automáticas hoje já são uma obrigação.”
Algumas padarias da cidade, por exemplo, contam de fato com robôs fazendo atendimento. Na unidade da zona sul de SP da padaria Villa Grano, Virgulino, um robô de R$ 92 mil, entrega pedidos, recolhe louça suja (com auxílio de um garçom) e ajuda os colegas nos picos de atendimento. “Fizemos isso para ajudar os colaboradores, não é uma substituição. Às vezes, eles trabalham mais pela falta de mão de obra”, diz Luis Ferreira, proprietário.
Sotaque
Mas existe um limite para a automação? Fernando Cunha, da Casa Cunha, diz que sim. “Inovar não é só usar tecnologia, é entender o que faz sentido para a comunidade.”
Sua padaria ampliou o conceito tradicional, incorporando restaurante e empório, mas mantendo a identidade portuguesa e o sotaque familiar. A proposta permite que o estabelecimento seja visitado de manhã, no almoço ou à noite, sempre com algo novo para descobrir.
Gustavo Fernandes, da Ceci, é enfático sobre onde deve estar o foco. “A inovação na padaria está na questão geracional, e não na essência”, acredita. “Temos de manter a essência, mas com a preocupação de trazer as crianças para a padaria. Criar memórias afetivas.”
É por isso que a Ceci organiza festa de Dia das Crianças, Halloween, traz o Papai Noel e planeja visitas de escolas para ver os pães sendo feitos. Não é tecnologia, é investimento em vínculo emocional.
José Marcos Reis, da Requinte, destaca que as padarias hoje oferecem centenas de serviços diferentes, do clássico pingado com pão na chapa a sopas e pizzas. É essa diversidade que atende às diferentes necessidades do cliente.
A Bella Paulista exemplifica bem essa multiplicidade: funciona como padaria, restaurante, confeitaria, gelateria e pizzaria.
Patrícia Oliveira ressalta o investimento em delivery, cardápios variados, bufês e ingredientes de qualidade. “A inovação está em manter o serviço impecável, o frescor constante e a capacidade de surpreender, mesmo após 20 anos.”
Há também um movimento em direção a produtos mais elaborados. Matheus Bernardo menciona que hoje se vê nas padarias uma variedade de pães artesanais e de fermentação natural – produtos que eram restritos a casas especializadas.
Se há um consenso entre os entrevistados é que a padaria moderna precisa ser multifuncional. “A Bella Paulista é padaria, restaurante, confeitaria, gelateria e pizzaria, tudo no mesmo espaço, para atender públicos diferentes, em diferentes momentos do dia”, explica Patrícia Oliveira.
José Marcos Reis, da padaria Requinte, reforça essa visão. “Nós temos uma grande gama de serviços”, diz. “A gente pode atender as pessoas com café da manhã, com almoço, com o chá da tarde, sopa, pizzas.”
Mas há algo mais sutil nessa transformação. Matheus Bernardo, de Guarulhos, toca num ponto crucial ao diferenciar padarias que nasceram com o bairro das que chegaram depois. “A relevância urbana dela é ser o primeiro ponto de encontro, é ser o primeiro comércio, é fazer parte da fundação do bairro, é ter esse pertencimento.”
Esse “bairrismo”, como ele chama, cria uma lealdade que nenhum aplicativo consegue comprar. “A pessoa vai tratar a padaria como sendo dela”, diz.
Mão de obra
Se a tecnologia é a grande aliada, a falta de mão de obra qualificada é o calcanhar de aquiles. Todos os entrevistados mencionaram o problema – alguns com urgência preocupante. “A grande dificuldade que a gente tem hoje é uma coisa cultural em relação à falta de mão de obra”, lamenta José Marcos Reis. “Os jovens hoje querem mais flexibilidade, e nós temos uma demanda muito grande da necessidade do horário. A gente trabalha da manhã até a noite.”
Para Matheus Bernardo, é preciso investir na base. Primeiro, levando em consideração questões relacionadas ao conforto no ambiente de trabalho. Áreas mais ventiladas, pé-direito mais alto, equipamentos que facilitem o trabalho.
Segundo, capacitação profissional. Terceiro – e aqui a tecnologia reaparece – automação inteligente. “Máquinas que possam levar uma louça suja para o ponto de limpeza, máquinas que facilitem essa limpeza. Em vez de eu ter de treinar mais gente, esse cara tem de fazer um serviço técnico”, diz.
A ideia é liberar o colaborador para o que realmente importa. “Para ele focar nesse atendimento, eu posso ter um robô levando a louça ou trazendo o pedido”, explica. É usar a tecnologia para potencializar e não substituir o humano.
Otimismo
Há algo de notável em conversar com quem vive esse negócio: um otimismo resiliente. “As padarias se reinventaram muitas vezes para sobreviver e vão se reinventar sempre que preciso”, afirma Gustavo Fernandes, da Ceci. Uma das principais apostas é que as padarias fiquem cada vez mais integradas ao bairro, valorizando ingredientes locais, sustentabilidade e relações humanas.
Patrícia Oliveira, que gerencia uma operação ininterrupta há 20 anos, não tem dúvidas sobre isso. “A padaria é parte da rotina afetiva e prática do brasileiro. Em São Paulo, especialmente, ela é uma extensão da casa – um espaço de convivência, trabalho, celebração e pausa”, diz.
O futuro do setor não está em escolher entre tradição e inovação, mas em fazer as pazes entre elas. A padaria de amanhã terá robôs levando pedidos, mas o atendente ainda saberá que seu Manuel toma o café mais clarinho. Terá QR codes nas mesas, mas o cheiro de pão quente continuará trazendo memórias da infância. Usará inteligência artificial para otimizar estoques, mas o padeiro ainda acordará de madrugada para sovar a massa.
“Quando a padaria une essa questão, que já é bem antiga, já é do início das padarias e do porquê ela se enraizou, com modernidade, com tecnologia, você tem uma fórmula que é quase imbatível”, afirma Matheus Bernardo.



