Escrevo como cidadã e magistrada que, do foro ao lar, escuta o rumor das ruas. O que vimos nos Complexos do Alemão e da Penha, no dia 28 de outubro de 2025, não foi apenas uma operação policial: foi o retrato cru de um país atravessado por uma guerra sem declaração formal, mas com luto oficial em cada janela.
Segundo a imprensa nacional e internacional, a ação reuniu cerca de 2.500 agentes e desencadeou confrontos prolongados. O número de mortos variou conforme a fonte — entre 64 e 132 —, com apreensão de armamento pesado e relatos do uso de drones por facções criminosas para lançar explosivos sobre as forças de segurança. O próprio governador definiu o episódio como “narcoterrorismo”.
O léxico da guerra, contudo, não deve nos cegar para a gramática do Direito. Desde a ADPF 635 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), o Supremo Tribunal Federal exige do Rio de Janeiro um plano efetivo de redução da letalidade policial, com obrigações de transparência, investigação e protocolos mínimos — diretrizes homologadas, ao menos em parte, em 3 de abril de 2025. A Corte também instou a articulação federativa para retomar áreas sob domínio armado. É fato: a Constituição não tolera zonas de exceção — nem a exceção por ação criminosa, nem a exceção por ação estatal.
Vejo que a cultura do medo é hoje o principal instrumento de domínio dos grupos criminosos: ela regula o toque de recolher informal, impõe silêncio às testemunhas e reescreve, à bala, as regras da vizinhança. A expansão e a interoperabilidade das facções explicam parte desse poder. O Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital, com redes que atravessam fronteiras estaduais e o sistema prisional, disputam e compartimentam territórios. Mapeamentos oficiais e jornalísticos recentes mostram a presença de dezenas de organizações pelo país e a hegemonia nacional dessas duas — cuja atuação alcança também Estados até a pouco considerados mais pacíficos, como o Mato Grosso, que vem sofrendo uma crescente onda de crimes brutais e execuções associadas ao tráfico e à disputa de facções.
O Rio de Janeiro concentrou, em 2025, recordes de tiroteios e confrontos entre grupos armados — um indicador que se alimenta de mercados ilícitos, do tráfico de armas e drogas e das falhas históricas de presença estatal. O Instituto Fogo Cruzado vem documentando esse adensamento de confrontos, o que ajuda a demonstrar que operações de grande escala, por si sós, não pacificam territórios quando não há continuidade de políticas públicas, inteligência qualificada e presença do Estado no cotidiano.
Os fatos da Penha e do Alemão revelam também a modernização bélica do crime: drones, explosivos improvisados, armas automáticas — recursos que se popularizaram e se disseminaram, segundo especialistas que alertam para a “normalização” do emprego de VANTs (Veículos Aéreos Não Tripulados-drones ) por quadrilhas. Sem resposta tecnológica à altura e sem integração real e efetiva entre polícias, Ministério Público, sistema penitenciário e órgãos de fronteira, nossas operações seguirão correndo atrás do rastro, e não do fluxo, dessas cadeias de abastecimento.
Como cidadã, não romantizo o confronto. Sei do preço humano pago por moradores e por agentes públicos. O histórico recente na mesma região — com bloqueios, mortes de civis, serviços paralisados — expõe uma espiral que se retroalimenta: cada incursão amplia o saldo de dor e, sem ocupação social e institucional subsequente, devolve o território à disputa armada. O luto é reiterado; a confiança, escassa.
Entre o barulho dos tiros e o silêncio das vítimas, erguem-se também as vozes divididas da sociedade. Uns clamam por respeito aos direitos humanos; outros, pela contenção da violência policial; há ainda os que lamentam, com razão, a morte dos policiais em serviço. No entanto, parece haver menos indignação com o cotidiano de medo, com o cerco imposto às comunidades e com as mortes violentas que se acumulam longe dos holofotes — aquelas que não ganham manchete, mas que corroem lentamente a crença na Justiça e no Estado. A indiferença diante do terror cotidiano é o mais perigoso dos colapsos éticos.
Outro ponto que precisa ser lembrado é que o combate às organizações criminosas não se faz apenas no terreno físico dos confrontos armados, mas sobretudo no campo financeiro. É urgente uma atuação firme e concreta contra o braço econômico das facções, que movimenta milhões por meio de lavagem de dinheiro, comércio ilícito, investimentos disfarçados e corrupção institucional. Atacar o dinheiro é atacar o poder. Enquanto houver falhas na rastreabilidade das transações, nas barreiras de fiscalização e na integração entre as agências de controle, o crime continuará se reinventando, sofisticando-se e financiando o medo.
Não adianta, também, que órgãos estaduais e federais continuem “empurrando a responsabilidade entre si”, como se o enfrentamento à criminalidade organizada fosse uma tarefa de outrem. O cidadão brasileiro não pode ser refém dessa desarticulação. É indispensável uma coordenação mínima, uma integração real e permanente entre as instâncias de segurança, investigação, inteligência e justiça. A defesa da sociedade não se faz com discursos, mas com estratégia, continuidade e cooperação institucional.
No plano ético, o Estado não pode se parecer com aquilo que combate. A força legítima é aquela que se submete ao Direito e se mede pelo cuidado com a vida, com a integridade dos inocentes e dos próprios agentes públicos. A coragem que o país precisa hoje não é a que dispara, mas a que constrói: a que sustenta políticas de longo prazo, investe em inteligência, enfrenta o dinheiro do crime e não se rende ao improviso.
Nosso luto, afinal, é diário. Ele está em cada atuação criminosa não combatida com firmeza, estratégia e organização; em cada silêncio cúmplice; em cada omissão travestida de burocracia. Enquanto o Estado hesita, a violência avança. E a cada hesitação, o medo se torna lei e a esperança, contravenção.
É preciso lembrar que segurança pública não é espetáculo, mas compromisso constitucional com a vida. E que a paz — tão desejada — não floresce onde o Estado se retrai, mas onde a Justiça caminha junto com a coragem.
Estamos de luto sim e faz muito tempo, mas pelos tristes acontecimentos diários, pelo medo imposto à sociedade pelos criminosos tão bem organizados que dominam cada vez mais espaços.

Fontes consultadas e referências
- The Guardian (29/10/2025): cobertura sobre a operação no Complexo do Alemão e da Penha, com números e análise de especialistas em segurança.
- O Globo e G1 (outubro/2025): reportagens detalhando o uso de drones, o número de mortos e a definição de “narcoterrorismo” pelo governo do Rio de Janeiro.
- ADPF 635 – Supremo Tribunal Federal: decisão e relatórios de monitoramento sobre redução da letalidade policial e controle de operações em comunidades.
- Fórum Brasileiro de Segurança Pública – Anuário 2025: dados sobre expansão das facções e lavagem de dinheiro no crime organizado.
- Instituto Fogo Cruzado: mapeamento de tiroteios e mortes violentas na região metropolitana do Rio de Janeiro em 2025.
- BBC Brasil e UOL Notícias: análises sobre a expansão do Comando Vermelho e PCC para outros Estados, incluindo o Mato Grosso.
- Especialistas citados: coronel José Vicente da Silva Filho (ex-secretário nacional de Segurança Pública), Ilona Szabó (Instituto Igarapé), e Luiz Eduardo Soares (antropólogo e pesquisador em segurança pública).
Olinda Altomare é magistrada em Cuiabá e cinéfila inveterada, tema que compartilha com os leitores do Circuito Mato Grosso, como colaboradora especial. @aeternalente


