Há pouco mais de cem anos, em julho de 1924, a cidade de São Paulo estava sob fogo cruzado. Um levante militar levou o então presidente da República Arthur Bernardes a bombardear a capital paulista. Em meio ao caos e às bombas que atingiam a capital, um homem decide que a arte não poderia ser mais uma vítima da guerra. Este homem era Pedro Augusto Gomes Cardim (1867-1932), uma figura central na vida cultural da cidade, que marchou até a Pinacoteca do Estado para resgatar e proteger em local seguro o incipiente acervo do centro cultural que hoje abriga obras de valores incalculáveis.
Em setembro de 1925, poucos meses depois deste episódio histórico, Gomes Cardim fundou a Academia de Bellas Artes de São Paulo. Cem anos depois, sua sobrinha-bisneta, Patrícia Cardim, dirige o Centro Universitário Belas Artes, como a escola passou a se chamar.
“Muitas vezes, me pego imaginando na cena: ele correndo com a sua espada quando a cidade estava em fogo até a frente da Pinacoteca para que as obras não fossem queimadas ou destruídas”, revelou Patrícia em entrevista ao Estadão.
Graças à atuação de Pedro Augusto Gomes Cardim no salvamento das obras da Pinacoteca, recebeu do governador da época o direito de ocupar o prédio da própria Pinacoteca para instalar a sua Academia. Lá a Belas Artes permaneceu por 40 anos.
O ato de bravura de Gomes Cardim não foi ato isolado, mas talvez o ápice de uma vida dedicada a construir uma identidade e uma cena cultural de São Paulo. Gomes Cardim costumava dizer que São Paulo era um “eterno bocejar” e sonhava em ter uma cidade que tivesse uma vida cultural tão pujante quanto à do Rio de Janeiro ou de outras cidades europeias que ele conhecia e frequentava.
Deu a si mesmo a missão de transformar a cidade em um polo cultural do País. Para isso, esteve envolvido na construção do Theatro Municipal, do Conservatório Dramático e Musical e do Instituto Histórico e Geográfico antes mesmo de criar a Belas Artes.
Ele foi figura-chave da Semana de Arte Moderna de 1922, muito próximo dos modernistas, em especial Oswald e Mário de Andrade e Heitor Villa-Lobos. Essa proximidade fica patente em um cardápio que Mário de Andrade guardou e hoje integra o seu acervo depositado no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP). Em um banquete oferecido em um hotel ao lado do Theatro Municipal em 19 de fevereiro de 1922, em plena Semana de Arte Moderna, os convidados puderam degustar o Coeur de filet à la Gomes Cardim, um prato que homenageava o fundador da Belas Artes.
Além de tudo isso, Gomes Cardim foi ainda jornalista, vereador, deputado estadual, dramaturgo, compositor e até intendente de obras da cidade em 1897, quando construiu o Cemitério do Araçá.
As celebrações do centenário
Ao liderar o centenário da Belas Artes, Patrícia Cardim propôs uma série de atividades que culminaram com uma celebração no último domingo, dia 28, no Theatro Municipal. O espetáculo, intitulado Onde a Tradição Veste o Contemporâneo, teve a participação da Orquestra Sinfônica Jovem do Municipal, do Ballet da Escola de Dança de São Paulo e o Coral Belas Artes.
No mesmo dia, foi lançado o livro Os Primeiros 100 Anos, que resgata a história, revela o legado do seu fundador e projeta o futuro. O volume reúne ainda depoimentos de ex-alunos, registros históricos, imagens de acervo e reflexões sobre as transformações das últimas décadas na educação, nas artes e na criatividade.
Além disso, a Chilli Beans, empresa fundada por Caíto Maia, que mantém relações próximas com o Centro Universitário Belas Artes, recriou o modelo de óculos que Gomes Cardim usava. “Chegar aos 100 anos como uma instituição independente, plural e cheia de energia criativa não é para qualquer um. E, claro, a Chilli Beans não ia ficar de fora dessa. Rolou um mega desafio: recriar os óculos icônicos do fundador para homenagear o centenário. O resultado? Uma collab que é puro estilo, inspiração e histórica”, disse o empresário.
O futuro da Belas Artes
Se Pedro Augusto sonhava em ver uma São Paulo como polo cultural do Brasil, Patrícia sonha em ver a Belas Artes – que hoje mantém três campi na cidade de São Paulo e um no interior do estado – se espalhar por todo o País. “Eu sonho ver a Belas Artes pelo Brasil. Ainda tem muitas possibilidades na área da economia criativa no Brasil e temos que aproveitar isso”, defende a diretora.
Ela aponta que, apesar da riqueza do artesanato e dos festivais culturais espalhados pelo Brasil, a formação profissionalizante na área criativa ainda é escassa. “Há muito a ser feito, e a Belas Artes tem um papel a cumprir nesse cenário”, diz.
Ela revelou que já há planos em curso para esta expansão. “Após as celebrações do centenário, o comitê diretivo da instituição planeja realizar experiências imersivas em diversas cidades brasileiras para mapear o potencial do mercado criativo”, indica.
Patrícia diz ainda que não tem medo do uso das inteligências artificiais, visto por muitos artistas como uma grande e desleal ameaça. Ao contrário, elas foram integradas à sala de aula na Belas Artes. “A IA não resolve a qualidade de um projeto de um designer, por exemplo, mas pode elevar a entrega”, defende a diretora.
Enquanto projeta o futuro e incorpora novas tecnologias, a Belas Artes busca manter o espírito do seu fundador, o homem que protegeu as artes paulistas com a sua espada e construiu um legado palpável para a cidade. “Os valores de Pedro Augusto permanecem como a base da Belas Artes”, finaliza a herdeira que busca fortalecer a cena artística e cultural não mais de uma cidade, mas de um país