Se os anos 2010 e 2020 contam com uma abundância histórica de filmes de super-heróis, o cenário não era exatamente parecido nos anos 2000. À época, a Marvel já ensaiava seu domínio do cenário com o sucesso das franquias X-Men, Blade e Homem-Aranha, mas ainda enfrentava altos e baixos, tendo lançado os fracassos Hulk, Demolidor e Elektra.
Sua grande rival, a DC, dominava as telinhas, com a série Smallville e a animação da Liga da Justiça fazendo grande sucesso. Nas telonas, no entanto, o cenário era precário. Depois de 1997, que viu a editora levar os péssimos Batman & Robin e Steel – O Homem de Aço, o selo lançou apenas dois títulos no cinema, o comicamente ruim Mulher-Gato, em 2004, e o agora-clássico-cult Constantine, em março de 2005.
Foi com esse histórico recente ruim que a Warner Bros., dona da DC, oficializou Batman Begins, reboot da franquia do Homem-Morcego que tinha a missão de fazer os fãs esquecerem Batman & Robin e iniciar uma nova franquia do personagem nos cinemas. Para isso, o estúdio alistou o diretor Christopher Nolan, então conhecido pelo sucesso modesto de Amnésia, e o roteirista David S. Goyer, que havia assinado o roteiro da trilogia Blade.
O encarregado de vestir a capa e o capuz do Batman foi Christian Bale, em alta em Hollywood após atuações elogiadas em Psicopata Americano, Capitão Corelli e O Operário. Nolan ainda cercou o eventual astro com nomes de peso, incluindo Morgan Freeman, o vencedor do Oscar Michael Caine, Liam Neeson, Katie Holmes, Gary Oldman e Cillian Murphy.
Indo na contramão das produções de super-heróis coloridas e fantasiosas da época, Nolan e Goyer decidiram criar uma versão realista do Batman, abandonando elementos que, embora icônicos nos gibis, não faziam mais sentido no cenário cínico e militarizado dos Estados Unidos após o 11 de setembro. Contrariando os pessimistas (e surpreendendo os otimistas), Batman Begins estreou em junho de 2005 conquistando a crítica e o público, arrecadando US$ 373 milhões nas bilheterias mundiais – valor que, antes de Vingadores, de 2012, era considerado uma grande vitória para um filme de herói.
Mais do que o sucesso financeiro, Batman Begins provou que era possível fazer um filme divertido e sério baseado em histórias em quadrinhos, abrindo de vez as portas para a fixação de Hollywood com o gênero de super-herói que dominou as telas nas décadas seguintes.
Com Batman Begins tendo completado 20 anos de sua estreia no Brasil, veja o que aconteceu com o elenco e equipe do filme e entenda por que seu legado se tornou uma pedra no sapato da DC na disputa cinematográfica com a Marvel:
Christian Bale – Bruce Wayne/Batman
Embora ainda não fosse o astro mundial que é hoje em dia, Bale já estava chamando muito a atenção de Hollywood. Tendo alcançado o auge de sua carreira até então com Psicopata Americano, de 2000, o ator ainda passou por uma transformação corporal radical para viver o insone Trevor Reznik em O Operário, de 2004. Na ocasião, ele perdeu 27 kg para atingir a forma raquítica do personagem, no que seria a primeira grande mudança física a que ele se submeteria em sua carreira. Para viver Bruce Wayne, no entanto, não só ele precisaria recuperar esse peso, como precisaria ultrapassá-lo para atingir o físico de super-herói.
Sua versão de Bruce Wayne foi bem diferente da de seus predecessores. Seguindo o tom estabelecido por Nolan e Goyer, Bale interpretou o bilionário de forma mais intensa e séria, sem a personalidade sarcástica de Michael Keaton ou os sorrisinhos e trocadilhos de George Clooney. Seu Batman também era bem diferente. Além de contar menos com apetrechos tecnológicos, ele tinha uma abordagem muito mais aterrorizante em suas interações com criminosos, algo evidenciado na escolha do ator de usar vozes diferentes para quando interpretava o protagonista com e sem máscara – escolha influenciada por Kevin Conroy, que deu voz ao Batman na série animada.
Batman Begins, obviamente, não foi o último sucesso de Bale nos cinemas. Além de estrelar as duas sequências do longa, ele ainda reeditou a parceria com Nolan em O Grande Truque e foi um dos grandes destaques de Os Indomáveis. Em 2011, ele venceu seu primeiro Oscar de atuação ao viver ex-boxeador Dicky Eklund em O Vencedor. Bale receberia mais três indicações nos anos seguintes, por Trapaça, A Grande Aposta e Vice.
Seus filmes mais recentes também foram grande destaque na mídia, com seus papéis em Ford vs Ferrari, Thor: Amor e Trovão, Pálido Olho Azul e Amsterdam sendo considerados os melhores aspectos dos títulos, que tiveram níveis de sucesso diferente perante ao público.
Katie Holmes – Rachel Dawes
Recém-saída da série Dawsons Creek, Holmes teve em Batman Begins o primeiro blockbuster de sua carreira. Até então, ela havia estrelado alguns filmes menores, como Por Um Fio, A Filha do Presidente e Do Jeito que Ela É, mas nada que tivesse impactado as bilheterias ou a cultura pop de forma profunda.
Escalada por Nolan para viver a promotora Rachel Dawes, Holmes interpretou a personagem indo além do interesse romântico tradicional de filmes de herói. Ao invés de ter que ser constantemente resgatada, ela tinha papel ativo na luta do protagonista contra o crime, processando policiais corruptos, investigando políticos e servindo como a bússola moral de Bruce Wayne, ditando muitos dos valores que ele incluiria em sua cruzada contra o crime.
Infelizmente, a carreira de Holmes não foi tão cheia de sucessos quanto a de seus colegas. Após deixar a sequência Batman: O Cavaleiro das Trevas por problemas de agenda – embora rumores apontem que seu então marido, Tom Cruise, tenha influenciado na decisão -, seus trabalhos mais relevantes acabaram acontecendo na televisão, com a minissérie Os Kennedys, de 2011, e Ray Donovan, na qual atuou em 11 episódios em 2015. Fora isso, ela acumulou fracassos de crítica e/ou de bilheteria, incluindo Cada Um Tem a Gêmea que Merece, Querido Ditador e Objetos Raros.
Michael Caine – Alfred Pennyworth
Já vencedor de dois Oscars, Caine foi o escolhido por Nolan para viver Alfred, mordomo e figura paterna de Bruce, tendo criado o bilionário após o assassinato de seus pais. Com o charme que marcou sua carreira até ali, o ator introduziu leveza no universo sério de Nolan, com algumas tiradas irônicas e falas espirituosas dando o tom de sua relação paternal com o protagonista.
Além das duas sequências de Batman Begins, Caine voltaria a trabalhar com Nolan em O Grande Truque, A Origem, Interstellar, Dunkirk e Tenet, além de ter papéis de destaque em Kingsman: Serviço Secreto, Truque de Mestre e A Grande Fuga, longa que marcou sua aposentadoria, anunciada em 2023.
Morgan Freeman – Lucius Fox
Outro grande aliado de Bruce Wayne em sua vida dupla é Lucius Fox, inventor e engenheiro da Wayne Enterprises que providencia os principais apetrechos do Batman, incluindo sua capa, seu gancho e o icônico batmóvel. Freeman, já muito bem estabelecido em Hollywood e então com três indicações ao Oscar, assumiu o papel em Batman Begins. Assim como Michael Caine, o personagem é um dos responsáveis por trazer uma pitada de humor ao filme de Nolan, roubando suas cenas com falas irônicas e piadas às custas de seus empregadores.
Curiosamente, Freeman receberia seu primeiro Oscar meses antes da estreia de Batman Begins, por seu trabalho em Menina de Ouro. Ele voltaria a ser indicado ao prêmio em 2010, depois de viver o ativista e líder político Nelson Mandela em Invictus.
A carreira de Freeman seguiu cheia de sucessos, incluindo os filmes da franquia Truque de Mestre, Antes de Partir, RED: Aposentados e Perigosos, O Procurado, Uma Boa Pessoa e a série Operação Lioness. Ele voltará a viver o ilusionista Thaddeus Bradley em Truque de Mestre: O 3º Ato, que estreia em 13 de novembro.
Gary Oldman – Jim Gordon
Fechando o grupo de aliados icônicos do Batman, Batman Begins trouxe também uma nova versão de Jim Gordon, um dos poucos policiais de Gotham que não foi tentado à corrupção e que acaba se aliando ao protagonista e a Rachel para desmascarar os criminosos da cidade. Gary Oldman, um dos atores mais versáteis de sua geração, assumiu o distintivo, em uma das atuações mais elogiadas não só do filme, mas da trilogia inteira de Nolan à frente do Homem-Morcego.
Oldman já era muito bem quisto em Hollywood. Das atuações exageradas em O Profissional e O Quinto Elemento ao retrato delicado de Sirius Black em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, o ator já tinha um leque vasto de sucessos na sua carreira.
Depois de Batman Begins, Oldman foi indicado a três Oscars, levando sua primeira estatueta em 2018, por O Destino de Uma Nação, no qual viveu Winston Churchill. Além de retornar em Batman: O Cavaleiro das Trevas e Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, ele ainda se reuniu com Nolan em Oppenheimer.
Não bastasse sua carreira de sucesso nos cinemas, Oldman agora também levou seus talentos para o streaming, com a série Slow Horses, do Apple TV+, sendo elogiada tanto pelo público quanto pela crítica especializada.
Liam Neeson – Ras Al Ghul
Indicado ao Oscar por A Lista de Schindler e com experiência em grande blockbusters após estrelar Star Wars – Episódio I: A Ameaça Fantasma, Neeson aceitou o papel de Ras Al Ghul, um dos principais vilões da mitologia do Batman. Diferentemente da versão imortal dos quadrinhos, a versão do personagem em Batman Begins era um homem comum, embora extremamente habilidoso, que recrutou e treinou Bruce após o bilionário deixar Gotham para viajar o mundo.
A escalação causou alvoroço entre os leitores mais assíduos dos quadrinhos, uma vez que Ras Al Ghul é historicamente um personagem asiático. A contratação de Neeson é criticada até hoje como um ato de white washing, acusação que segue a carreira de Nolan até em seus trabalhos mais recentes.
Assim como Bale, Neeson fugiu um pouco da caracterização caricata e vilanesca que os fãs estavam acostumados a ver de Ras em outras mídias. Mais sério e manipulador, o vilão de Batman Begins ganhou a empatia do público ao contar sua história trágica e estender a mão a Bruce quando ele mais precisava. Sua simpatia fez com que sua traição no terceiro ato do longa fosse uma recebida como uma grata surpresa.
Depois de uma carreira marcada por dramas, Batman Begins deu início a uma nova fase da carreira de Neeson, que se reinventou como astro de ação. De 2005 para cá, ele protagonizou a trilogia Busca Implacável e filmes como 72 Horas, Desconhecido, Fúria de Titãs, Sem Escalas, O Passageiro, Legado Explosivo e mais filmes do gênero.
Curiosamente, o ator tem, nos últimos anos, ensaiado mais uma mudança na carreira, agora direcionada à comédia. Depois de trabalhar com Seth MacFarlane em Uma Família da Pesada, Ted 2 e Um Milhão de Maneiras de Pegar na Pistola, ele também mostrou seu lado cômico em Inside Amy Schumer, The Orville, MIB: Homens de Preto – Internacional e Derry Girls. Sua próxima empreitada no gênero é a nova sequência de Corra que a Polícia Vem Aí!, que estreia em 14 de agosto.
Cillian Murphy – Dr. Jonathan Crane/Espantalho
O último grande astro de Batman Begins é Cillian Murphy, que à época tinha grandes filmes como Extermínio e Cold Mountain em seu currículo. Ele foi selecionado por Nolan para viver Jonathan Crane, psiquiatra que, com a ajuda da polícia corrupta de Gotham, enviava criminosos para seu hospício, o infame Asilo Arkham, onde ele usava uma substância gasosa para enlouquecer seus “pacientes”.
De todos os atores de Batman Begins, Murphy é o único que atua de forma caricata – ou, pelo menos, dentro do contexto sério e realista do filme. Seu Crane, que assume a identidade criminosa de Espantalho, é desequilibrado, hostil e exagerado, características que seguiram com o personagem em seus retornos em Batman: O Cavaleiro das Trevas e Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge.
Assim como outros atores do filme, Murphy se tornou parceiro frequente de Nolan, atuando em A Origem, Dunkirk e Oppenheimer, sendo este o filme que lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator em 2024.
Murphy também teve grande impacto na cultura pop, estrelando Peaky Blinders, série da Netflix que foi sucesso mundial e solidificou a estrela do ator diante do público.
Christopher Nolan – Diretor
Depois de Batman Begins, Nolan fez carreira com filmes que se tornaram grandes queridinhos da crítica. Além das duas sequências, ele emplacou sucessos com A Origem, O Grande Truque, Interstellar, Dunkirk e Oppenheimer, pelo qual venceu os Oscars de Melhor Filme e Melhor Direção. Até o momento, o único filme realmente divisivo do cineasta até aqui foi Tenet, de 2020, cujo conceito complicado de reversão temporal e a mixagem de som bizarra renderam as primeiras acusações de que ele seria um diretor “superestimado”.
Além dos sucessos, uma marca constante na trajetória de Nolan é sua obsessão – no melhor sentido da palavra – com efeitos práticos. Dos corredores móveis de A Origem à explosão atômica de Oppenheimer, o diretor tenta, sempre que possível, dispensar o uso da computação gráfica, o que dá aos seus filmes um senso de realismo raramente encontrado no cinema de Hollywood.
O legado de Batman Begins
Ressuscitando um personagem que havia sido manchado após dois filmes medíocres na década anterior, Batman Begins renovou o interesse do público geral no personagem a na DC em geral. Seguindo o tom sério e realista estabelecido pelo longa de Nolan e companhia se tornou um ideal cinematográfico que perpetua em filmes de ação até hoje. Até mesmo a Marvel, grande rival da DC no mercado, foi influenciada pelo filme, com títulos como Capitão América: O Soldado Invernal e Viúva Negra se inspirando nos temas trazidos na produção.
O sucesso do longa, no entanto, se tornou uma pedra no sapato da DC nos anos seguintes. Após Superman: O Retorno não dar o lucro imaginado pelo estúdio, muitos executivos culparam o tom colorido e otimista do filme estrelado por Brandon Routh e, nos 2010, a Warner decidiu relançar o universo da editora seguindo a cartilha sombria e realista de Nolan. O resultado foi a criação de uma franquia inconsistente, inicialmente liderada por Zack Snyder, que se levava a sério demais e tomou várias correções de curso ao longo dos anos.
Para cada filme “sério” como O Homem de Aço, Batman vs Superman: A Origem da Justiça e Mulher-Maravilha, a DC lançava também produções leves como Aquaman, Liga da Justiça e Esquadrão Suicida. Entre 2013 e 2023, quando o chamado DCEU foi oficialmente encerrado com Aquaman 2: O Reino Perdido, poucos foram os títulos da franquia que não polarizaram opiniões, dividindo aqueles que clamam pelo retorno de Snyder (que deixou Liga da Justiça após uma tragédia familiar e lançou seu corte do filme em 2021) e os que pedem por uma direção mais próxima aos gibis.
Nesse meio-tempo, o Batman ganhou mais duas versões nas telonas, vividas por Ben Affleck entre 2016 e 2023, e Robert Pattinson, em Batman, de 2021. Matt Reeves, que comandou o longa estrelado por Pattinson, já está confirmado no comando de uma sequência, que ainda não tem previsão de estreia.
Uma terceira interpretação do personagem ainda dará as caras em Batman: Brave and the Bold, filme que integrará o recém-criado DCU (sem o “E”), comandado por James Gunn e Peter Safran, co-presidentes do DC Studios. O longa, por enquanto, não tem nem elenco nem diretor confirmados.
Por enquanto, o novo DCU está apenas engatinhando. Após estrear na TV com a animação Comando das Criaturas, o universo fará sua estreia nos cinemas em 10 de julho, quando Superman, escrito e dirigido por Gunn, entrar em cartaz. Nos próximos meses, a franquia ainda receberá novas produções para o streaming Max, com títulos como Lanterns e a segunda temporada de Pacificador já confirmados e em produção.
Ainda sob os apelos de fãs de Snyder, o novo DCU tem o desafio de se desvencilhar do estigma de “sombrio e realista” estabelecido por Nolan e porcamente emulado por outros cineastas e criar uma identidade própria. Ao mesmo tempo, os novos títulos do selo terão que se mostrar capazes de competir com a franquia da Marvel que, apesar de algumas decepções recentes, segue lançando conteúdos a todo vapor, com filmes e séries confirmados pelo menos até 2027.
Batman Begins e suas sequências estão disponíveis para streaming na Max.