Aos poucos, a estiagem mostra vestígios da época em que o ilustre morador vivia no local. Segundo pessoas que moram na região, esta é a primeira vez desde o alagamento – na década de 80 – que estes sinais aparecem. Na época, as propriedades da área foram desapropriadas pelo governo do Estado para a criação da Represa do Rio Jundiaí, que faz parte do Sistema Alto Tietê.
Nesta sexta-feira (11), o nível do Sistema Alto Tietê estava em 35,9%, de acordo com a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). Este é o indíce mais baixo desde 2006. Os níveis em abril de 2005 não estão disponíveis no site da companhia. Em dezembro, a água produzida na região passou a ser usada para abastecer parte dos moradores que antes eram atendidos pelo Sistema Cantareira, mas a medida foi anunciada pelo governador Geraldo Alckmin apenas em março. De lá para cá, o nível do Sistema Alto Tietê caiu cerca de 14%.
Nesta semana, pela primeira vez, o Sistema Cantareira ficou abaixo de 13%. O nível nesta sexta (11) era de 12,2%. O governo estadual está oferecendo desconto para moradores que economizam água em 31 cidades da Região Metropolitana. A Sabesp admitiu a possibilidade de adotar o rodízio de água.
Vestígios do passado
Foi justamente por causa da criação da represa, no distrito de Taiaçupeba, que Chang Dai-Chien decidiu abandonar a cidade. Em sua propriedade, ele havia reproduzido um pedaço da China no Brasil. A casa em estilo arquitetônico chinês chamava atenção de quem passava pelo lugar. Além da construção, jardins ricamente ornados com vegetação, flores, pedras e lagos eram outra atração do local.
Nascido em Taiaçupeba, José Carlos Domingues Silva caminha diariamente perto da represa. Com o novo cenário, ele já reconhece alguns sinais da antiga propriedade do pintor. “Algumas pedras que ficavam nos fundos da propriedade onde tinha os tanques e um jardim estão visíveis com a seca. A casa não dá para ver porque foi demolida antes da represa inundar o local. Mas também vi alguns “tocos” dos pinheiros da propriedade que foram cortados antes da inundação”, contou Silva. Alberto Domingues da Silva é irmão de José Carlos e conta que o pai dele trabalhou para o pintor entre os anos de 1975 e 1980. “Ele levava pedras para o Chang compor os jardins. Ele montava esses jardins de pedra e a partir disso pintava os quadros, usando apenas nanquim e pena.”
A arte de Chang
Para alguns críticos de arte, Chang Dai-Chien é o mais importante pintor chinês dos últimos 500 anos. “A arte da pintura na China tem uma tradição de 3 mil anos e no país trabalharam milhares de pintores. Para alguns críticos Chang é o mais importante pintor chinês dos últimos 500 anos. Isso e o boom econômico da China explicam a valorização financeira de suas obras”, observa José Roberto Teixeira Leite, historiador de arte e estudioso da cultura da China. Leite também é professor aposentado da Unicamp.
As obras de Chang em 2011 eram negociadas em leilões por mais de meio bilhão de dólares, de acordo com o historiador, ficando à frente de nomes como o pintor espanhol Pablo Picasso de quem ele era amigo. “Foi quando vivia em Mogi das Cruzes que Chang pintou algumas de suas mais importantes obras. Isso por conta de alguns fatos, como a sua própria evolução enquanto artista, o declínio de sua visão por problemas de saúde e também porque em Mogi Chang se sentia como na China. Ele morava em uma casa chinesa em meio a um jardim chinês, trabalhando em um pavilhão chinês, vestindo-se à chinesa com sua família e discípulos chineses, falando em sua língua natal”, destaca o historiador.
De acordo com Teixeira Leite a obra do artista pode ser dividida em duas grandes fases: a primeira em que se manteve fiel às características da pintura tradicional chinesa e a segunda em que se pode perceber uma ruptura com a tradição. “Os críticos ocidentais perceberam nessa segunda fase uma influência do Expressionismo Abstrato norte-americano. Mas Chang sempre negou veementemente isso. No entanto é essa última fase que hoje responde pelo imenso prestígio internacional do pintor”, pontua
Um pedaço da China em Mogi das Cruzes
Um chinês de barbas longas e trajes típicos era alvo de olhares curiosos nas ruas da Mogi das Cruzes da década de 50. O pintor Chang Dai-Chien depois de rodar algumas cidades do mundo fixou residência na cidade no final de 1953. “A primeira lembrança que tenho dele é do início dos anos 50. Eu não havia passado dos 5 anos de vida e andando pela Rua Doutor Deodato Wertheimer rumo à Igreja do Rosário para a missa das 11h de um domingo cruzei com uma caravana de pessoas estranhas. A frente, um homem pequeno de barbas e túnicas longas caminhava vagarosamente. Atrás do pequeno de barbas, uma caravana em ordem impecável. A senhora que andava imediamente atrás, trazia pelas mãos uma criança que mal conseguia sobrepor um passo após o outro. Depois, alguns jovens, três ou quatro, todos de olhos amendoados, atrás dos quais iam duas pessoas humildes. Uma delas levava ao colo um macacão gibão”, descreve o jornalista mogiano Chico Ornellas sobre o primeiro encontro que teve com o ilustre morador da cidade.
De acordo com Ornellas, antes de chegar a Mogi das Cruzes o pintor morou no Japão, na Índia e na Argentina. Em 1953 voltava para a Argentina de uma viagem aos Estados Unidos em um navio que fez várias escalas pela costa brasileira. Em Santos, Chang esperava um amigo e ouviu falar de uma região que não ficava longe do porto e tinha terras com preços compensadores. “Chang Dai-Chien visitou então, pela primeira vez, as cercanias de Mogi e logo mudou-se para cá. Ele e a família ocuparam uma ampla casa na Rua Santana próximo a esquina com a Rua Ipiranga”, conta Ornellas.
É desta casa que o médico Nobolo Mori, no alto dos seus 90 anos e de uma memória afiada, lembra do seu primeiro contato com o pintor que com o passar do tempo se tornaria seu grande amigo. “Fui até lá como médico, fazendo uma consulta domiciliar. O Chang não falava português apenas chinês e um pouco de japonês porque morou um tempo no Japão. Ninguém na cidade sabia quem era ele e nem sua importância no mundo das artes. Todos em Mogi estranhavam suas roupas típicas chinesas nas raras vezes que ele saía na rua”, diz o médico. Mori lembra que por causa de sua amizade com o pintor várias pessoas o procuravam, principalmente jornalistas, querendo conhecer Chang. “Eu sempre levava pessoas interessadas em conversar com ele até o casarão da Rua Santana.”
Mesmo já instalado em Mogi, Chico Ornellas se recorda que dois anos depois de chegar à cidade, o mestre chinês da pintura percorria o bairro de Capela do Ribeirão, atualmente o distrito de Taiaçupeba, e encontrou um sítio de 6 alqueires no quilômetro 17 da atual Estrada Mogi-Bertioga. “Ele comprou as terras e depois de quatro anos a família se mudou para o local, no início dos anos 60. Chang transformou a área em um recanto inesquecível. Lá tinha a horta das oito virtudes com pés de caqui, um imenso jardim com flores, plantas, um casal de cisnes no espelho d'água, um pavão e os bonsai, árvores em miniatura. Mas uma das grandes paixões de Chang era o dragão deitado que era um imenso pinheiro da propriedade que por força de amarrações de arame adquiriu a forma que lhe dava o nome.”
Ornellas destaca que esteve na propriedade pela primeira vez em 1963 junto com o professor Horácio da Silveira. Outro detalhe guardado na memória do jornalista era a atenção que o pintor dedicava a seus visitantes. “Quando algum visitante chegava era levado pelo mordomo a passear pelo jardim, enquanto o mestre se preparava para receber o estranho. Não importava se era um importante marchand disposto a comercializar suas obras ou apenas um adolescente curioso como eu. A todos ele dedicava uma atenção profissional.” Ornellas lembra ainda que Chang tinha satisfação em receber convidados para banquetes. Nessas ocasiões eram servidos sempre mais de dez pratos preparados por uma cozinheira vinda de Hong Kong. Um deles à base de barbatanas de tubarão.
Mas em 1968, o pintor chinês começa a ter problemas de saúde, como catarata, diabetes e problemas cardíacos. A família e os amigos insistiram para que ele mudasse para os Estados Unidos, mas Chang resistiu. No entanto, ao saber que uma barragem afundaria seu sítio, ele decidiu morar em uma cidade próxima a Carmel, perto de São Francisco nos Estados Unidos. A mudança definitiva foi em 1970, onde passou a ocupar uma ampla casa em Pebble Beach. Voltou a Mogi das Cruzes em 1973 para ver o jardim que criara pela última vez antes da inundação. Em 1976, a convite do governo da China viajou para rever velhos amigos e decidiu morar no país.
Foi em uma viagem ao oriente que médico Nobolo Mori viu pela última vez o amigo. “Eu fui até a casa dele em Formosa e ele me presentou com várias gravuras de suas obras. Ele as colocou em uma pasta onde escreveu em chinês 'honorável Doutor Mori'.” Aos 84 anos em abril de 1983, Chang morreu em um hospital da China. Nessa época, a Barragem do Rio Jundiaí ainda não havia inundado o paraíso criado por ele em Mogi das Cruzes.
G1