“DOCUMENTOS ÚNICOS E INSUBSTITUÍVEIS”
Em fins de 1979, Jacutinga encontrava-se na aldeia dos indígenas do grupo Wasusu, do povo Nambikwara do Vale do Guaporé, em cumprimento ao período de estágio probatório da Fundação Nacional do Índio (Funai). Nesse tempo, o líder Yehu, o mais velho do grupo, acompanhado da população da aldeia, se dirigiu à aldeia dos espíritos, Taihantesu, levando o rapaz recém-chegado. Sem entender o idioma de seus anfitriões e estes sem entender o idioma de Jacutinga, atingiram ao destino.
Ao integrar a jornada, Jacutinga não tinha a menor ideia de onde estava colocando seus pés. Mas, percebeu mudanças no comportamento dos indígenas, ao se aproximarem do santuário: as conversas dos adultos quase que cessaram, assim como as brincadeiras da criançada. As vozes, em tom baixo, pareciam estar avisando alguma coisa, pois os adultos olhavam atentos de um lado para outro. A poucos passos da entrada da caverna, talhadas no paredão interno, inúmeras inscrições. Painel de petróglifos.
Sem êxito, Jacutinga se esforçava para ler aqueles sinais encravados no paredão. Também verificou que escavações haviam sido feitas, pois parte do solo estava cortada em camadas em busca vestígios e artefatos antigos. Somente pelos livros conhecia a arte rupestre. Absoluto era o silêncio. O dia começava a deixá-los quando retornaram à aldeia. Jacutinga em noite insone.
No dia seguinte, Yehu novamente conduziu seu grupo em expedição. Dessa vez, Jacutinga sentiu para onde iria. Outra caverna. Um foco da luz do dia entrando por uma abertura na parte superior, a lembrar uma abóboda. A luminosidade oferecia aos seus olhos a dimensão do ambiente. Mais petróglifos. Outra noite insone.
Apenas quando finalizava o estágio no Vale do Guaporé, no Posto Indígena Manairisu, em conversa com a enfermeira Maria Aurora da Silva, ficou sabendo que Yehu o levou ao sítio arqueológico Taihantesu, onde se dá a convivência com os antepassados, para onde seguem as almas após a morte. A primeira caverna visitada por Jacutinga, “Abrigo do Sol”, anos antes foi escavada por Eurico Theofilo Miller, do Museu Arqueológico do Estado do Rio Grande do Sul. Nessa região seus estudos notificaram a existência de sítios arqueológicos com oficinas líticas, cavernas com petróglifos e/ou cerâmica, paredões com petróglifos e sítio cerâmico a céu aberto. Miller chegou à região Wasusu por indicação de Jesco von Puttkamer, fotógrafo e documentarista brasileiro, que anos antes havia registrado com sua máquina fotográfica o complexo das cavernas Taihantesu.
Parte dos trabalhos de Miller foi divulgada por Puttkamer na revista National Geographic com o título “Man in the Amazon: stone age presente meets stone age past”, quando relatou que “uma sondagem nessa quadrícula até os 800 cm não atingiu solo estéreo, sugerindo que o início da ocupação humana estaria mais abaixo e que, hipoteticamente, não teria menos de ca. 25.000 a.P.” (antes do presente). O arqueólogo, ainda, recomendou: “as escavações neste sítio deveriam ser retomadas para o reconhecimento do ‘início’ da presença paleoíndio na região do Refúgio Guaporé.”
Em agosto de 1981, chegaram à região de Taihantesu Niède Guidon, arqueóloga, e Anne-Marie Pessis, antropóloga, quando “foram prospectados quatro dos inúmeros sítios que apresentaram pinturas rupestres, tanto dentro quanto fora das reservas indígenas”, como também abundante material arqueológico, caracterizados pela arqueóloga como “documentos únicos e insubstituíveis”, imprescindíveis para a elucidação da cronologia e das rotas de penetração do homem na América; para o estudo paleoíndio no Brasil.
No ano seguinte, Carlos Eduardo Mills, antropólogo da Funai, e sua equipe chegaram à região. Jacutinga, nessa época na Chapada dos Parecis, morando no Posto Indígena Nambikwara, o acompanha até à Abrigo do Sol, caverna que havia conhecido com o grupo de Yehu Wasusu.
Em 1987-1988, na direção da Administração Regional da Funai, em Vilhena, Rondônia, Jacutinga retornou às cavernas sagradas. Mas, desta vez, no apoio aos estudos e pesquisas na região das cavernas que não foram contempladas no processo de demarcação da Terra Indígena Vale do Guaporé. Os trabalhos de campo resultaram no relatório “Taihantesu: preservação de um santuário indígena”, de autoria de Marcelo Óppido-Fiorini e Maria Clara Migliácio, com vistas à demarcação da Terra Indígena Taihantesu, contígua à Terra Indígena Vale do Guaporé.
Conselho Indigenista Missionário, Fundação Estadual do Meio Ambiente, Fundação Nacional do Índio/Cuiabá, Instituto de Pesquisa Currupira Araras, Instituto Nacional Pró-Memória, Operação Anchieta, Secretaria de Estado de Meio Ambiente, Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Universidade Federal de Mato Grosso. Foram muitas as instituições que contribuíram decisivamente para a preservação do santuário Taihantesu. Para a demarcação da Terra Indígena Taihantesu. Deve ser lembrada a dedicação da antropóloga Maria Lúcia Franco Pardi e do indigenista e espeleólogo José Guilherme Aires na efetivação da “Proposta para tombamento dos sítios Taihantesu e Pequizal da cultura indígena Nhambiquara”, que incluiu inúmeros pesquisadores em uma ação multidisciplinar e interinstitucional.
Mas, esta história não parou por aí…
Foto: Jesco von Puttkamer (1979)