O encontro de chefes de Estado que fazem parte do G20 começa nesta segunda-feira, 18, no Rio de Janeiro, sob a sombra da influência do presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, e da divergência entre os países a respeito das guerras na Ucrânia e no Oriente Médio. O evento era uma das principais apostas do governo Lula para o Brasil assumir protagonismo global no terceiro mandato do petista, mas tende a ser ofuscado pela perspectiva de enfraquecimento do multilateralismo a partir do ano que vem e pelos conflitos geopolíticos.
O risco, neste momento, é ter uma declaração final anódina como resultado, dadas as diferenças entre os países.
Após dias de negociação que avançaram a madrugada, diplomatas chegaram, no domingo ao rascunho de um texto comum, ainda pendente de acertos entre os chefes de Estado que estarão no Rio. O documento, se aprovado por todos, será assinado pelos chefes de Estado na terça-feira, 19.
O G20 precisa chegar a um consenso para aprovar um comunicado.
Representante de posições compartilhadas com Trump, o argentino Javier Milei ameaça constranger o Brasil e não aceitar uma declaração final conjunta. Há ainda a perspectiva de se optar por um comunicado fragmentado, destacando os temas de oposição da Argentina. Isso já foi usado no G20 durante o governo Trump. Os dois cenários, no entanto, significariam para um fracasso diplomático.
A tendência é que a declaração final da Cúpula de Líderes G20 no Rio não cite Israel e Rússia, dois dos países envolvidos e militarmente mais poderosos nas duas guerras em andamento. A palavra “guerra” também não é mencionada na mais recente versão do texto, ainda passível de mudanças. O termo usado agora é “conflito”.
Esse é o principal assunto a ser resolvido no Rio e sobre o qual não há acordo. O Itamaraty afirma que o recado principal do G20 deve ser a busca da paz. A discussão é um dos temas mais complexos do G20, porque opõe membros do G7 – aliados da Ucrânia – e o Sul Global – que, ou se inclinam claramente em favor da Rússia, ou se colocam como “neutros”.
O assunto travou os trabalhos nas duas últimas edições do G20, em 2022 (Bali, Indonésia) e 2023 (Nova Délhi, Índia). Entre as cúpulas indonésia e indiana, a declaração do grupo sobre a guerra no Leste Europeu foi abrandada em favor da Rússia.
A escalada na guerra da Ucrânia na madrugada deste domingo dificulta ainda mais a tentativa de acordo entre os países. Após a Rússia lançar um ataque massivo contra Kiev, o governo Biden autorizou que a Ucrânia utilize mísseis norte-americanos de longo alcance com a Rússia. Até então, os EUA haviam autorizado apenas o uso de seus lançadores de foguetes HIMARS.
O temor é que o uso de armas norte-americanas na Rússia levem o presidente russo, Vladimir Putin a considerar como um ataque direto da Otan e a retaliar seus membros.
O norte-americano Joe Biden estará presente na cúpula. Já o presidente russo, Vladimir Putin, não veio ao Brasil. Ameaçado por uma ordem de prisão internacional, Putin desistiu de participar, até mesmo por videoconferência. Ele será representado pelo ministro das Relações Exteriores, Serguei Lavrov. O governo Lula rejeitou apelos de Kiev para que convidasse o presidente Volodmir Zelenski ao Rio.
A reunião de líderes no Rio terá ao todo 55 delegações, entre países membros, convidados e organizações internacionais. Cerca de 2,3 mil jornalistas e profissionais de imprensa estão credenciados.
A novidade desta edição do G20 é a guerra na Faixa de Gaza, que começou após a edição de 2023, em Nova Délhi, na Índia. Ainda ocorrem tentativas nas negociações diplomáticas de inserir palavras mais críticas a Israel, sem mencionar o país, junto à necessidade de garantir assistência humanitária ao território palestino.
A pressão vem da Arábia Saudita, Egito e países árabes, além da África do Sul. Esse bloco conta com mais simpatia do Brasil, que abertamente critica a ação militar de Israel.
Outra iniciativa é a tentativa de inserir no parágrafo as repercussões dos ataques israelenses no Líbano, em frente de batalha contra o Hezbollah.
Divergências climáticas
A Cúpula do G20 (grupo dos 20) reúne as 19 maiores economias do mundo, a União Europeia e, a partir deste ano, a União Africana. Como anfitrião e presidente do G20, o Brasil estabeleceu os três pilares de discussão pelas lideranças internacionais: combate à fome e à pobreza; reforma dos organismos de governança internacional; e transição energética e desenvolvimento sustentável.
O primeiro tópico da agenda tende a ser o único que terá avanço concreto, com o anúncio das adesões à Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza. A tendência é de resultados tímidos nas duas outras frentes.
Na questão climática, assim como na geopolítica, também fica clara a divisão entre os membros do G7 e do Brics. Há disputa porque os países ricos, que jamais cumpriram a promessa de financiar a descarbonização, apontam o dedo para os atuais maiores poluidores, como China e Índia, e exigem que os países em desenvolvimento também paguem a conta da transição energética e mudança climática. Isso é considerado inaceitável por eles e pelo Brasil.
Países desenvolvidos têm pressionado as nações em desenvolvimento a apresentarem metas climáticas mais ambiciosas e os emergentes, como China e Brasil, a compartilharem o financiamento da descarbonização global. É o que tem travado conversas em Baku, no Azerbaijão, onde acontece a COP29. O debate, segundo diplomatas, foi transportado para o Rio de Janeiro.
A perspectiva de que Trump irá retirar novamente os EUA do Acordo de Paris e se recusar a assumir compromissos ambientais, segundo negociadores, esvazia em parte o debate e faz com que a tendência seja a de ter um comunicado de chefes de Estado pouco ambicioso quanto ao financiamento climático.
Fator Trump
A vitória de Donald Trump na eleição americana, no início deste mês, é um balde de água fria entre os defensores de consensos multilaterais criados em fóruns como o G20. Trump adere ao isolacionismo internacional e econômico, com a política externa que batizou de “América Primeiro” e despreza os organismos de governança global.
Em sua última participação em um G20, em Osaka, em 2020, os EUA se recusaram a ratificar os compromissos ambientais previstos no Acordo de Paris, de 2015, e a saída foi fazer uma declaração final fragmentada. Trump é abertamente contra as pautas centrais da cúpula no Brasil como mudanças climáticas e taxação de super-ricos.
Embora a reunião ocorra ainda sob a presidência de Joe Biden, a adesão à Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, proposta pelo governo Lula, e o futuro dos acordos e decisões são incertos sob o segundo governo do republicano nacionalista.
“Biden está chegando ao G20 como um super pato-manco, ou seja, um presidente que já não será mais presidente em janeiro. Portanto, não se pode esperar muito da visita ele”, observa Sarang Shidore, diretor do Programa Sul Global do Quincy Institute.
“É um cenário em que qualquer tipo de grande negociação de liberalização comercial e facilitação de comércio vai ficar muito enfraquecida. E claro que Trump não quer nem ouvir falar na possibilidade de maior participação de países como a China e a Rússia nesse tipo de organização multilateral”, afirma o cientista político e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha Mauricio Santoro.
Após desistir de acompanhar Biden em uma viagem a Manaus para conhecer a Amazônia, Lula receberá o presidente americano para um almoço de trabalho na terça-feira, no Rio.
Em Manaus, Joe Biden anunciou a destinação de outros US$ 50 milhões (cerca de R$ 290 milhões) ao Fundo Amazônia. Mesmo com os US$ 50 milhões anteriores que já havia anunciado, o valor fica aquém da promessa de US$ 500 milhões para Floresta. Além disso, o montante ainda precisa ser submetido ao Congresso dos EUA, que terá as duas casas de maioria republicana a partir de 2025.
O presidente argentino, Javier Milei, tende a ser, na cúpula deste ano, o representante da nova ordem global que emergirá no ano que vem após a posse de Donald Trump. Sob o comando do ultraliberal Milei, a Argentina passou apresentar pedidos de rediscussão de temas, recuou no apoio dado antes à proposta de taxação dos super-ricos, e indicou que pode mais uma vez barrar acordos isoladamente na reta final da Cúpula de Líderes. Milei abriu ao menos cinco frentes de embate: multilateralismo, gênero, desenvolvimento sustentável, tributação de grandes fortunas, clima e meio ambiente.
Se insistir em não aderir a pontos do documento costurado pela diplomacia brasileira, o caminho pode ser o de uma declaração fragmentada, a exemplo da de Osaka, que contou com o adendo norte-americano sobre a rejeição ao ponto climático estabelecido pelos demais países. Isso significaria um fracasso diplomático e para o multilateralismo.
O presidente da França, Emmanuel Macron, viajou à Argentina na véspera do G20 para tentar convencer Milei a abandonar a postura de bloqueio dos acordos em discussão no Rio.
O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Gueterres, clamou neste domingo, 17, que os países tenham “bom senso”, para que cheguem a um consenso em torno dos temas coletivos, como os que integram a Agenda 2030, que determina os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). “Peço a todos os países para que tenham espírito de consenso e bom senso”, declarou. Gueterres lembrou que o mundo “já tem tantas divisões geopolíticas”. “Se o G20 se divide, o G20 perde relevância”, alertou.
Guterres respondia justamente a questionamento sobre discordâncias da Argentina. A mudança de posição dos representantes do governo do presidente argentino Javier Milei tem prolongado as discussões em torno do comunicado final de líderes da cúpula do G20, no Rio de Janeiro.
“A agenda 2030 é um instrumento que tem consenso de todos os países do mundo e é um caminho claro para enfrentar tremendas desigualdades e tremendas injustiças que existem pelo mundo”, afirmou Guterres, em coletiva a jornalistas no centro de imprensa da cúpula de líderes, no Rio.
Fome, clima e governança global
Na segunda-feira de manhã, durante a abertura das reuniões, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva irá anunciar a lista de países e organizações que integrarão a Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza.
A criação do mecanismo já foi aprovada antes e angariou novos integrantes nas últimas semanas. A expectativa do governo Lula é receber adesão de 100 membros. O objetivo é acelerar a redução da pobreza e eliminar a fome, até 2030. A aliança funcionará por cinco anos, a partir de 2025, com um secretariado sediado na FAO – Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – em Roma, na Itália.
Além de obter doações de recursos, uma das intenções da aliança é mobilizar fundos já existentes para programas que reconhecidamente funcionam, como os de transferência de renda condicionada, agricultura familiar, merenda escolar e cadastro único. Os países que desejam receber dinheiro devem se comprometer a adotar um dos programas.
O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), por exemplo, aderiu à Aliança e anunciou que vai alocar até US$ 25 bilhões em financiamentos aos seus países-membros para garantir a implementação de políticas e programas de combate à pobreza e à fome entre 2025 e 2030. O banco também irá trabalhar com o Brasil em uma revisão de meio de período para avaliar o progresso da iniciativa.
A reforma da governança global – ONU, instituições multilaterais financeiras, como FMI e Banco Mundial, e Organização Mundial do Comércio – será tema de debate entre os chefes de Estado na segunda-feira à tarde. Lula tem repetido que os organismos não têm conseguido assegurar a paz ao redor do mundo, e que isso impede que os países se concentrem nos temas de desenvolvimento econômico e social.
Já na terça-feira, o principal tema em debate é o desenvolvimento sustentável e a transição energética. Há um embate entre quem deve pagar a conta, entre países ricos e pobres. A expectativa da conclusão do fórum na terça-feira será quanto a possibilidade ou não de um documento conjunto assinado neste cenário desafiador.