Opinião

Jacutinga e Antonio João na aldeia Balatiponé

Desde quando colocou seus pés na então denominada Fundação Nacional do Índio (Funai), em 1979, quando passou a viver junto ao povo Nambikwara, Jacutinga conheceu gentes de tudo quanto é lugar deste brasilzão (termo empregado unicamente em razão de sua medida de superfície). Entre elas, o indigenista Antonio João de Jesus, do III Curso de Formação em Indigenismo, realizado em 1972, em convênio com a Universidade de Brasília (UnB).

A ave, na condição de estagiário do VIII Curso de Formação em Indigenismo promovido pela Funai, seguiu em voo migratório da Mata Atlântica, Rio de Janeiro, para o Planalto Central, Mato Grosso. Rumo ao Posto Indígena Manairisu, um dos grupos Nambikwara (anos mais tarde, Terra Indígena Vale do Guaporé) onde permaneceu por 50 dias, aproximadamente, duração da segunda etapa do curso.

A primeira etapa do curso, com duração aproximada de três meses, foi realizada em uma chácara localizada nas proximidades do Centro Comercial Gilberto Salomão, na capital federal, que ofereceu “disciplinas de Antropologia Aplicada, Desenvolvimento Comunitário, Legislação, Introdução à Administração Geral, Telecomunicações, Educação, complementadas por palestras várias” sobre Etnologia Indígena, Operação de Rádio, Saneamento Básico e Primeiros Socorros, conforme relatório do antropólogo Antônio Carlos de Souza Lima. Após a etapa teórico-conceitual, o Curso de Formação de Indigenismo progredia para a realização de “estágio de campo”, desenvolvido em Postos Indígenas no interior de Terras Indígenas.

O encontro entre Jacutinga e Antonio João aconteceu no início do “estágio de campo”. A ave havia chegado há pouco em solo mato-grossense. De Toyota, conduzida pelo indigenista Sílbene de Almeida, Chefe do Posto Indígena Manairisu, Jacutinga e o indígena Cristóvão Hahaintesu estavam na aldeia dos Balatiponé (Umutina), Iranxe, Nambikwara e Paresi, em uma faixa de transição da Amazônia e do Cerrado, nos municípios de Barra do Bugres e Alto Paraguai.

Sílbene, em retorno ao Posto Indígena Manairisu, conduzia o indígena à sua aldeia, após uma consulta médica em Cuiabá, e Jacutinga, para iniciar o período de “estágio de campo”, onde permaneceria na aldeia do grupo Wasusu, sob a liderança de Etreca.

De passagem, atravessaram o rio Paraguai, na altura de Barra do Bugres, para chegarem ao Posto Indígena Umutina, sob a gestão de Antonio João, então funcionário efetivo da instituição. O trio pernoitou por dois dias no casarão histórico, edificado nos tempos do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), àquela época denominado Posto Fraternidade Indígena (1913), nome dado por Candido Mariano da Silva Rondon. A noite foi agitada. Cristóvão Hahaintesu, pouco à vontade em terras desconhecidas, acordou todos. Gesticulava agitadamente. Falava alto em sua língua. Em desespero, afirmava estar diante ao espírito de seu pai. Do Posto Indígena Umutina, os três seguiram para o Vale do Guaporé. Durante a viagem, o Hahaintesu ficou à vontade e se divertia a repetir tudo o que Jacutinga falava. Queria aprender a língua portuguesa.

Enormes distâncias separaram Jacutinga e Antonio João. Ainda assim, vez por outra se encontravam em Cuiabá, sede administrativa das Terras Indígenas e seus respectivos Postos Indígenas jurisdicionados à 5ª Delegacia Regional da Funai.

Em 1983, pela “rádio cipó”, rede de comunicação que operava de boca em boca, circulou a notícia de que o indigenista Antonio João de Jesus havia sido exonerado em ato administrativo assinado por Otávio Ferreira Lima, então presidente da Funai (exonerado no ano seguinte pelo Presidente da República João Batista Figueiredo). A saída abrupta de Antonio João, que no momento dirigia a Ajudância da Funai em Araguaína, Goiás (povos Apinayé, Avá-Canoeiro, Iny Karajá, Krahô e Xerente), causou comoção entre os indígenas e indigenistas. 

A inconsequência do ato de Lima fez nascer um movimento de revolta, liderado pelos indigenistas da Funai. Jacutinga, já pertencente ao quadro de pessoal do órgão, à frente do Posto Indígena Nambikwara, onde passou a morar-trabalhar, mobilizou os indígenas que assinaram (a maior parte, com o polegar) um documento pedindo o retorno do indigenista à Araguaína. A mobilização por parte dos indígenas e indigenistas não impediu a transferência compulsória de Antonio João. Processado por incitar os indígenas, foi transferido para o Museu Rondon, da Universidade Federal de Mato Grosso. Logo, assumiu a presidência da Associação de Amigos do Museu Rondon (Asamur), onde permaneceu até 2012.

Anna Maria Ribeiro Costa

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Anna é doutora em História, etnógrafa e filatelista e semanalmente escreve a coluna Terra Brasilis no Circuito Mato Grosso.

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