Displicentemente, a clicar a tecla seletora de canais do controle remoto da TV aberta, uma repentina pausa no Canal Brasil. “Larica Total” no ar? Como assim? O programa havia encerrado em 2012! E lá estava Paulo de Oliveira, personagem do ator Paulo Tiefenthaler, excêntrico porta-voz da “Culinária de Guerrilha”. Uns setenta e poucos episódios foram ao ar, com uma palinha após dez anos fora do ar. De 2008 a 2012, “Larica Total” permaneceu nas telas, com excelente índice de audiência. Chegou a ser reconhecido como melhor programa humorístico da TV brasileira pela Associação Paulista dos Críticos de Arte.
O solteirão Paulo de Oliveira, morador de Santa Teresa, um bairro da cidade do Rio de Janeiro, na cozinha de seu apartamento, a tirar da sacola da feira livre e exibir os ingredientes para a refeição do dia. A proposta foi um cozido com ingredientes acessíveis, de preparo simples e sem muita técnica, destoando dos demais programas de gastronomia apresentados na TV brasileira.
Os ingredientes para o cozido, de valor razoável, que podem ser tranquilamente substituídos, sem grandes prejuízos ao paladar, um a um são anunciados pelo chefe de cozinha: abóbora, alho, banana, cebola, cenoura, couve, jiló, mandioca, “tão matando os índios”, molho de tomate e páprica.
A cena do ator com o braço levantado e a mandioca em sua mão – como um gesto de luta – foi congelada pela telespectadora. De modo inopinado, do humor culinário para a violência praticada contra dos povos indígenas. A mandioca, um dos alimentos básicos da culinária dos povos indígenas e que foi levado à mesa dos não indígenas, como um instrumental identitário. A cozinha do personagem Paulo de Oliveira a denunciar: “tão matando os índios” do Cerrado, da Floresta Amazônica, do Pantanal, da Caatinga, da Mata Atlântica, do Pampa, conforme revelado no “Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil” (2024), uma publicação do Conselho Indigenista Missionário, com dados de 2023.
A afirmativa do ator dentro de um programa com estupendo índice de audiência foi um alerta que entrou, sem pedir licença, na casa dos brasileiros enquanto aprendiam a fazer um cozido à “Larica Total”. A frase ecoou a omissão e morosidade na regularização de terras indígenas, as invasões possessórias, a exploração ilegal de recursos naturais, os danos ao patrimônio material e imaterial, a desassistência nas áreas de saúde e da educação, a disseminação de bebida alcoólica e outras drogas, a mortalidade infantil, o suicídio.
Ao proferir “tão matando os índios” o programa televisivo indignou-se com a naturalização da violência praticada contra os povos indígenas.
Para quem gosta de cozido, bom apetite!