Opinião

Liberdade no coração, salve o Almirante Negro

Finalmente vou falar de carnaval. É claro que com uma virada de maré pela proa. Ia elogiar o mini desfile do Dia Nacional do Samba, os ensaios de rua que agitam as noites nas comunidades cariocas e da região metropolitana que se dedicam à f(r)esta, falar do lançamento dos sambas enredo pela Rio Carnaval nas plataformas musicais e a expectativa na chegada dos ensaios técnicos em janeiro. Faltam só dois meses para o carnaval!

Ia e vou, mas com o olhar voltado para uma escola, um enredo. Pelo menos nessa crônica.

Visitei os enredos para analisar os mais interessantes aos ouvidos e olhares dos leitores, especialmente os de Mato Grosso e do Rio Grande do Sul, que acompanham a longa saga da série “É carnaval” em crônicas, matérias, fotos e vídeos.

De cara pensei no caju, fruta tão cuiabana. Seja perpitola (dane-se a linguagem simples), com seu sabor, aroma e cores, seja na música (de Vera e Zuleica, por exemplo), ou na arte de gente do naipe de Adir Sodré e João Sebastião, lá está a delícia.

Passei pela onça da Grande Rio, pela cigana Esmeralda da Imperatriz e o Lunário Perpétuo da Porto da Pedra. Tudo aí ligado a nosso imaginário popular.

Só que no caminho, antes de terminar a rodada, topei com o Paraíso do Tuiuti, o Almirante Negro e episódio que durante muito tempo não fez parte da história do Brasil. Aquele que a gente conhece da música de Aldir Blanc e João Bosco, censurada na ditadura. A que teve que mudar o título de “Almirante Negro” para “O mestre-sala dos mares” e que no refrão almirante virou navegante. Essa!

A versão censurada do Almirante Negro por Ayrton Montarroyos 

O movimento que eclodiu dia 22 de novembro de 1910 e só foi nomeado como Revolta da Chibata em 1959 no livro de Edmar Morel, o primeiro a “retratar” o evento. De 1937 a 1945, por exemplo, a história não pode ser contada por causa da ditadura Vargas. Aquela cujo chefe do DPI, Departamento de Imprensa e Propaganda era Filinto Muller. Ele mesmo. Ela ressurge no samba que viraria um clássico do repertório da MPB em plana ditadura de 1964.

Mas, afinal, onde entra Mato Grosso nesse episódio?

Acontece que a revolta que fez os marinheiros tomarem os quatro maiores navios da esquadra brasileira e voltarem seus potentes canhões para o centro da capital federal, o Rio de Janeiro, foi desencadeada por um castigo corporal imposto a Marcelino Rodrigues Menezes.

É aí que entra o personagem nascido em Nossa Senhora da Conceição do Alto Paraguai Diamantino em 1856, João Batista das Neves. Pelo código disciplinar o castigo poderia ser de, no máximo, 25 chibatadas (!). Só que… Ele, o comandante do couraçado Minas Gerais, ordena que sejam dadas 250. Na frente da tripulação que vê o marinheiro desmaiar e continuar apanhando. Deu ruim.

A ordem do mato-grossense desencadeia a revolta que o levaria à morte, já que voltou ao navio mais cedo de uma homenagem, se recusou a sair do navio e feriu um marinheiro revoltoso. Deu muito ruim.

Os insurgentes exigiam o fim dos castigos corporais (90% dos marinheiros eram negros) e melhoria na alimentação. Hermes da Fonseca, presidente que havia assumido uma semana antes, se recusou a dialogar e o Senado Federal assume as negociações que levam a proibição das chibatadas e a anistia dos revoltosos, rapidamente quebrada pelo governo.

Centenas de marinheiros foram fuzilados. 2000 expulsos da força. João Candido, o líder, preso, transferido para Hospital de Alienados, tem alta e volta para a prisão na Ilha das Cobras, até ser absolvido de todas as acusações em 1912. É defendido, a pedido da Ordem de Nossa Senhora do Rosário e dos Homens Pretos pelo jovem jurista Evaristo de Moraes.

Aos gaúchos, curiosos pra saberem qual a relação com essa saga esclareço que João Cândido Felisberto, que recentemente teve seu nome inscrito no livro dos Heróis da Pátria, nasceu na Provincia de São Pedro do Rio Grande do Sul. Hoje, município de Encruzilhada do Sul. Sua origem está na letra do samba enredo que diz:

“Ô,ô, a casa grande não sustenta temporais/ Ô, ô, veio dos Pampas para salvar Minas Gerais”

Fotos mini desfile Tuiuti

Tuiuti 023 MSPB Dandara Ventapane Raphael Rodrigues abre alas aberta

Já a origem do estopim da Revolta da Chibata, essa não faz parte do samba. Uma rua de Cuiabá leva seu nome. Outra em Diamantino. Na capital de Mato Grosso não existe um logradouro com o nome de João Cândido.

Por aqui, depois da pérola musical de João e Aldir, é a vez do carnaval (mais uma vez), agora no Grupo Especial das Escolas de Samba, na composição de Moacyr Luz, contar a saga da “Revolta da Chibata” no samba que o Paraíso do Tuiuti “apura” nos ensaios de rua e levará à Sapucaí. Segura o refrão:

“Liberdade no coração/ o dragão de João e Aldir/ A cidade em louvação desce o morro do Tuiuti/”

Playlist do ensaio de rua https://www.youtube.com/playlist?list=PLNVGym3VNemB2dEk9XmAFaXIFMeT-BqV9

Texto, fotos e vídeos de Valéria del Cueto

Valéria del Cueto

About Author

Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Essa crônica faz parte da série “Ponta do Leme”, do SEM FIM... delcueto.wordpress.com

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