Opinio Juris

Breve história do leading case do crime de hermenêutica no Brasil

A expressão crime de hermenêutica é utilizada para definir a situação em que o órgão do Poder Judiciário ou o membro do Ministério Público pode vir a ser responsabilizado criminalmente pelo simples fato de sua intepretação ter sido considerada errada por um Tribunal que eventualmente a analise em grau recursal. 

No Brasil, a Constituição Federal nos artigos 99 e 127 assegura a autonomia e a independência funcional ao Poder Judiciário e ao Ministério Público no exercício de suas funções, existindo duas leis infraconstitucionais dando maior definição a forma pela qual se efetiva a independência funcional.

Uma delas é a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei complementar 35/1979) que garante aos magistrados o direito de não serem punidos ou prejudicados pelas opiniões que manifestarem ou pelo teor das decisões que proferirem, à exceção dos casos de impropriedade ou excesso de linguagem.

A outra é a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei Federal 8.625/1993) que assegura ao membro do parquet a “inviolabilidade pelas opiniões que externar ou pelo teor de suas manifestações processuais ou procedimentos, nos limites de sua independência funcional”.

Mas de onde surgiu a proibição do crime de hermenêutica ou foi cunhada a expressão crime de hermenêutica no nosso sistema jurídico? Essa resposta nos é dada no histórico julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal no final do século XIX, envolvendo atuação do juiz de direito Alcides de Mendonça Lima e no qual se discutia a independência dos magistrados.

O advogado do magistrado foi ninguém menos do que Ruy Barbosa de Oliveira, tendo recebido do Barão do Rio Branco o epíteto de “O Águia de Haia”, sendo necessário se fazer um escorço mínimo da causa defendida perante a Corte Suprema com suas nuances jurídicas e políticas.

O juiz Alcides de Mendonça Lima exercia sua jurisdição na comarca do Rio Grande, quando proferiu uma decisão contra a aplicação da Lei 10, de 16 de dezembro de 1895, sancionada pelo presidente Júlio de Castilhos, para dar nova organização judiciária ao Estado do Rio Grande do Sul. 

O magistrado no seu mister judicante em controle difuso declarou inconstitucionais os artigos 65 e 66 da citada lei, que alterava o número do Conselho de Sentença no Tribunal do Júri de doze para cinco jurados, não admitia recusas peremptórias e definia que a decisão dos jurados deveria ser por voto sem sigilo, formando-se o veredicto por maioria.

Com efeito, ao ser instalado o primeiro Júri sob sua presidência, na vigência Lei 10, de 16 de dezembro de 1895, ele proferiu a decisão declarando que os referidos dispositivos afrontavam o art. 72, §31, da Constituição de 1891, e por isso o presidente da província gaúcha Júlio de Castilhos representou ao procurador-geral para que buscasse “com a possível brevidade a responsabilidade do juiz delinquente e faccioso“. 

Interessante que Júlio de Castilhos era bacharel formado pela Faculdade de Direito de São Paulo e atuou ainda como deputado federal para a promulgação da Constituição de 1891, mas como grande líder nos pampas não gostou de ver contrariedade de pensamento judicial a uma lei por si sancionada na sua província.

O crime imputado ao juiz Alcides de Mendonça Lima foi o de prevaricação, previsto no artigo 207.1 do Código Penal de 1890, que possuía a seguinte dicção: commetterá crime de prevaricação o empregado publico que, por affeição, odio, contemplação, ou para promover interesse pessoal seu: 1º. Julgar, ou proceder, contra litteral disposição de lei. 

Em maio de 1896, o Superior Tribunal do Rio Grande do Sul aplicou tipificação mais branda do que a atribuída pela Procuradoria-Geral gaúcha e condenou o juiz Alcides de Mendonça Lima a nove meses de suspensão de duas funções por violar o artigo 226 do Código Penal de 1890. 

Ruy Barbosa assumiu a defesa contra a injustiça que recaía sobre o seu cliente magistrado, constando de suas portentosas peças jurídicas de defesa do juiz Alcides de Mendonça Lima, valiosos ensinamentos jurídicos que estão no bojo do recurso de revisão criminal 215, interposto perante o Supremo Tribunal Federal.

Esses basilares ensinamentos por sua grande profundidade merecem ser rapidamente citados pelos seguintes excertos:

(…)

“Aí está onde naufraga a ingenuidade dos que supõem ter, por esse manifestamente, delimitado com a precisão de uma raia inequívoca a linha entre o exercício correto e o exercício incorreto do poder confiado aos juízes, para joeirarem a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade na crítica das leis. O que é manifesto a um espírito, pode ser duvidoso ao critério de outros, ainda figurando que estes e aqueles ocupem nível superior, emparelhando ao mesmo tempo, no talento e no desinteresse. Não se descobriu, até hoje, a pedra de toque, para discernir com certeza absoluta o oiro falso do verdadeiro na interpretação dos textos.” (Rui Barbosa, Obras Completas, Vol. XXIII, Tomo III, p. 235).

(…)

 “Temos, pois, duas opiniões opostas, a respeito do assunto, no seio da hierarquia judicial: uma sustentada por um magistrado, na primeira instância; a outra, na segunda, por dois. Para esta é manifestamente constitucional o júri rio-grandense; para aquela, manifestamente inconstitucional. Ambas as maneiras de ver são professadas com a mesma sinceridade. Ao menos a nenhuma das partes dissidentes é lícito insinuar outra coisa. O Superior Tribunal do Estado não tem por graça da sua superioridade oficial esse direito. O de infalibilidade também não lhe assiste. Um parecer subalterno pode ter razão contra julgados supremos; um voto individual contra muitos. A questão, em última análise, se reduz, pois a isto: um conflito intelectual de duas hermenêuticas, falíveis ambas e ambas convencidas. Alguma das duas pode ser criminosa, quando ambas exprimem o fato mental, involuntário e honesto de uma convicção?” (Obras completas, op. cit., pp. 239-240)

(…)

“A resistência do juiz da comarca do Rio Grande a essa transmutação do júri numa degenerescência indigna de tal nome surpreendeu a política daquele Estado com o imprevisto de uma força viva e independente, a consciência da magistratura, difícil de submeter-se à prepotência dos governos. Com a necessidade então de acudir a obstáculo tão inesperado, improvisou-se, por ato de interpretação, nos tribunais locais, contra a magistratura, um princípio de morte, de eliminação moral, correspondente ao que, por ato legislativo, se forjara contra o júri, no gabinete do governador. O júri perdera absolutamente a sua independência, com o escrutínio descoberto e a abolição de recusa peremptória: o poder não abrira só um postigo sobre a consciência do jurado: aquartelara-se nela. Para fazer do magistrado uma impotência equivalente, criaram a novidade da doutrina, que inventou para o juiz os crimes de hermenêutica, responsabilizando-o penalmente pelas rebeldias de sua consciência ao padrão oficial no entendimento dos textos.

Esta hipérbole do absurdo não tem linhagem conhecida: nasceu entre nós por geração espontânea. E, se passar, fará da toga a mais humilde das profissões servis, estabelecendo, para o aplicador judicial das leis, uma subalternidade constantemente ameaçada pelos oráculos da ortodoxia cortesã. Se o julgador, cuja opinião não condiga com a dos seus julgadores na análise do Direito escrito, incorrer, por essa dissidência, em sanção criminal, a hierarquia judiciária, em vez de ser a garantia da justiça contra os erros individuais dos juízes, pelo sistema de recursos, ter-se-á convertido, a benefício dos interesses poderosos, em mecanismo de pressão, para substituir a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura, pela ação cominatória do terror, que dissolve o homem em escravo” (Rui Barbosa, Obras Completas, Vol. XXIII, Tomo III, pp. 227-228).

(…)

O grande jurista baiano ainda vaticinou na sua explanação sobre o descabimento da condenação que “Todos os erros judiciais poderiam reduzir-se a abusos de autoridade” (op. cit., p. 265), com a lembrança de que “Em toda a parte os abusos de autoridade são entidades penais nitidamente definidas, para não se deixar a interpretações requintadas o direito de criar, sob essa rubrica, um regímen de impertinências, ameaças e vexames, que manietaria por todos os lados o exercício legítimo do poder” (op. cit., p. 266).

E fez um alerta necessário sobre a criminalização do erro judiciário ao consignar que “o magistrado inferior, portanto, que não se resigne a enfiar uma carreira de suspensões sucessivas, tropeçando a cada passo em processos, terá de reduzir-se a espelho inerte dos tribunais superiores” e que os magistrados poderiam ser vítimas de um “curso intolerável de humilhações e terrores” (op. cit., pp. 275-276).

Esse alerta ainda foi dirigido não somente aos juízos monocráticos, mas também aos Tribunais, pois nem esses Juízos Revisores Colegiados estariam livres da aberração, pois “as minorias, nos tribunais superiores, não se poderão considerar a salvo da invenção perseguidora, forjada contra os juízes singulares. Se o magistrado, male judicando sola imperitia, se faz réu, no mesmo crime do juiz singular, pela sentença que pronuncia, incorre o membro do tribunal coletivo, pelo voto, que dá” (op. cit, p. 277).

Ainda, a lembrança feita ao caso Scott v. Stansfield  de 1868, julgado pela Justiça do Reino Unido, sobre a importância da independência judicial, colocava uma pá de cal na teratológica decisão proferida contra o magistrado gaúcho:

“Não cabe ação contra o juiz por atos praticados ou opiniões exprimidas, na sua capacidade judiciária, em um tribunal de justiça. Esta doutrina tem-se aplicado a todos os tribunais. É essencial, em todos os tribunais, que os juízes, instituídos para administrar justiça, possam exercê-la sob a proteção da lei, independentemente e livremente, sem contemplação, nem temor. Não é em proteção e benefício dos juízes dolosos e corrompidos que se estabeleceu esta norma jurídica: é em proveito do público, interessado em que os juízes se sintam em liberdade de exercer as suas funções com desassombro e sem receio de consequências. Como poderia um juiz desempenhar-se assim do seu cargo, vendo-se cada dia e a cada hora sob a ameaça de processos, em resultado das suas sentenças?” (op. cit., p. 281).

O juiz Alcides de Mendonça Lima foi absolvido de todas as condenações do Superior Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tendo o Pretório Excelso reconhecido a impossibilidade de condenação por crime de hermenêutica, o que prevalece até os dias atuais, conforme o reforço a independência do magistrado contido nos Princípios de Bangalore de 2001.

Assim é que os referidos princípios têm por finalidade orientar a atuação do juiz, de modo a contribuir para o fortalecimento da integridade judicial e da autoridade moral dos magistrados, o que se coaduna com uma sociedade democrática, a reclamar a valorização de normas de conduta que prezem a idoneidade, a imparcialidade e a integridade moral do juiz.

Enfim, entre os princípios bangalorianos está a independência do Judiciário deverá ser garantida pelo Estado e incorporada à Constituição, às leis do país e é dever de todos os governos e de outras instituições respeitar e observar à independência do Judiciário, indicando que não se mostra possível a criminalização da jurisdição por interpretação judicial da lei no caso concreto.

No Brasil, para nossa satisfação jurídica, isso já estava decidido pelo Supremo Tribunal Federal desde 1896 nesse emblemático caso do juiz Alcides de Mendonça Lima, em cuja tese de Ruy Barbosa foi sufragado o entendimento de que o magistrado não pode ser responsabilizado penalmente pelas rebeldias de sua consciência ao padrão oficial no entendimento dos textos e aplicação de Justiça.

Antonio Horácio da Silva Neto

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Antonio Horácio da Silva Neto é juiz de direito do Tribunal de Justiça de Mato Grosso e presidente da Academia Mato-grossense de Magistrados. Colaborador especial do Circuito Mato Grosso desde 2015.