Opinião

O Cantinho do Poeta

A literatura local também estava sempre bem representada com Dicke, Aclyse de Matos, Odair de Moraes, Marilza Ribeiro. Ali comprei “Quase Memória” do Heitor Cony, “Além do Coração Selvagem” de Clarice Lispector,  os contos de “O açougueiro” de  Juliano Moreno, e uma antologia imperdível do poeta Beat Lawrence Ferlinghetti, alguns didáticos, e confesso, faltaram mais trocados no bolso para comprar outras preciosidades que circulavam pelo acervo daquele espaço  alternativo.

Mas o que chamava a atenção, mesmo, naquele lugar, era a figura impar do baixinho com cara de sábio chinês sem barba, Antônio Sodré. Podíamos encontrá-lo tocando viola, flauta ou lendo devotamente as “Folhas de Relva” do Whitman ou o “Tao da Física”  do Capra, ler era sua grande viagem. Ao perceber a presença de alguém atendia cortesmente, usando uma  fala calma e as vezes ligeirinha, mas sempre entrecortada de pausas curtas para reflexão. O olhar tinha a profundidade que denuncia uma história de vida marcada por paixões, abismos e horizontes abertos para o infinito, um olhar que só os poetas conseguem envergar, um olhar de quem percorre atento e sonhador os caminhos da vida afora e da vida adentro.

Por falar em vida, Sodré fez da sua uma militância cerrada em defesa de tudo aquilo em que ele mais acreditava: a literatura e a poesia. E ali, naquele canto quase obscuro, silenciosamente lutou por quase duas décadas. Incansável, manteve ao lado de sua banca uma exposição constante de poesia, onde poetas como Drummond, Leminsk, Pessoa, Wanderlei Wasconcelos, Manoel de Barros, Lucinda Persona, Marta Cocco, entre outros, deixavam a partitura dos livros e o castelo de marfim  e se apresentavam cara a cara para o público que por ali passava. Quantas vezes fui surpreendido por um poema do Pessoa ou  do Chacal que eu não conhecia  ou  não dera a devida importância, quantas vezes descobri a genialidade e universalidade de nossos poetas tupinicuias.

 A literatura e a poesia por incrível que pareça estavam ali, sem nenhum apoio público brilhavam ali. Vestidas de majestade e singeleza elas fizeram daquele lugar, por um tempo pequeno e sem fim, sua morada, habitaram aquele varal tosco, aquele cantinho do poeta que teimou em remar sua canoa e segurar firme sua bandeira em plena tempestade.

 E porque era sábado,  todos se surpreenderam com a notícia: “o poeta Antônio Sodré morreu de um ataque fulminante do coração quando recitava seus poemas em um sarau literário”. Apesar do acontecimento ter sido veiculada diferente pela mídia local, muita gente ouviu a notícia assim: Fenomenal ataque literário iluminou por longos anos a rampa do IL e apesar do abandono e da ausência percebidos  naquele cantinho, a poesia insiste em continuar viva.

Paulo Wagner (É mestre em Estudos Literários, poeta e jornalista)

Redação

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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