A personagem desta crônica é uma mulher. Dizer isto ou nada é quase a mesma coisa, afinal mais da metade dos brasileiros são mulheres. Acrescentemos que esta mulher é uma negra. Mesmo assim ainda fica muito genérico, pois cerca de 50% das mulheres do Brasil são negras ou pardas. Busquemos então outra característica para distingui-la: ela é também velha (idosa seria melhor para não afetar sensibilidades).
Resultado até aqui: mulher, preta e velha o que ainda é insuficiente para identificá-la na multidão. Vamos nos socorrer com outras particularidades na tentativa de diferenciá-la: ela porta um lenço de cabeça com as cores do arco-íris, pormenor que a insere na comunidade lgbtqia+. Também veste-se como mãe de santo, traje próprio dos umbandistas.
Com estas característica fica mais difícil encontrar duas pessoas em um mesmo voo doméstico. Sim, porque nossa personagem estava entrando em um avião em São Paulo com destino ao Rio de Janeiro, quando aconteceu o episódio que vai ser narrado.
Ela era uma das últimas passageiras a embarcar e estava com um maleta de mão que não conseguia encaixar no bagageiro sobre sua poltrona. Diante da impossibilidade a comissária de bordo pediu-lhe que despachasse a mala, como é de praxe nestes casos.
Começou então um desentendimento entre ambas que foi prosperando enquanto os passageiros se irritavam com o atraso do voo.
Foi nessa hora que uma mulher resolveu se meter no assunto dizendo que era um ato machista e que ninguém faria aquilo com um homem. Pegando a deixa uma outra interveio acusando os comissários de etaristas porque desrespeitavam uma velha e aquilo era crime. Neste momento os funcionários da empresa aérea já estavam sendo acusados de dois crimes: machismo e etarismo ambos sujeitos a punições.
Mas o entrevero continua enquanto nossa personagem resiste, ignorando o apoio dos dois passageiros e de outros que se manifestaram. Um deles disse que era um explícito racismo dos brancos opressores. Alguém lembrou da opção sexual da personagem manifesto no lenço multicolorido que usava e garantiu que se tratava de um clássico caso de homofobia que deveria ser levado à justiça.
Enquanto isso a mulher já muito nervosa recusava-se a fazer o despacho da bagagem, atrasando ainda mais a partida do avião.
Quando acalmou um pouco, mas sem acatar a sugestão dos comissários, veio um passageiro lá do fundo e garantiu que todo aquele entrevero só acontecia porque a companhia aérea discriminava os umbandistas.
Provavelmente se os comissários exigissem de alguém (heterossexual, novo, católico, branco, homem) o despacho de bagagem e ele fizesse um barraco, ninguém se incomodaria com sua retirada do voo. Isto sugere que o preconceito talvez esteja na cabeça das pessoas que acharam que a personagem desta crônica fosse uma “coitadinha” necessitada de ajuda, quando na verdade ela sabia se virar muito bem sozinha. A verdadeira discriminação foi a intromissão dos “protetores dos perseguidos”.
Por certo as característica que os xeretas apontavam como causa de discriminação dos funcionários da empresa, eram de fato reais motivos de orgulho da passageira.
Agora, uma coisa é verdade “barraqueiras (os)” existem entre homens, mulheres, gays, héteros, novos, velhos, protestantes, católicos etc., etc. De repente a personagem desta crônica era uma delas.
Renato de Paiva Pereira – empresário e escritor