A cerca de 15 dias do fim do mandato de deputada federal e de assumir oficialmente a presidência da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), a advogada Joenia Wapichana (Rede-RR) avalia que os yanomanis passam por um "catástrofe humanitária" em consequência de fatores como a expansão do garimpo ilegal e da degradação ambiental.
De acordo com Joenia, que falou à Folha de S.Paulo antes da declaração de emergência de saúde pública no território indígena, a retomada das demarcações e a segurança de áreas indígenas na Amazônia dependem de força-tarefa entre ministérios de Lula e de recursos financeiros além do previsto no orçamento da fundação em 2023.
"Precisaremos de uma força-tarefa entre ministérios para promover demarcação e desintrusão de invasores dos territórios, prioridades para os povos", afirma.
Sem nomeação oficial, prevista para 5 de fevereiro, Joenia vive uma espécie de transição no órgão, cuja anulação durante o governo Bolsonaro resultou em violência e morte contra indígenas e perseguição aos que atuaram em defesa de seus direitos. Na Funai e entre os povos indígenas, o clima atual é de otimismo.
Assim, a deputada foi recebida na sede da autarquia por servidores, no dia 2 de janeiro, na retomada simbólica do prédio pelos indígenas e indigenistas. Na ocasião, foi anunciada a troca do nome do órgão, antes chamado de Fundação Nacional do Índio -termo hoje visto por lideranças como preconceituoso e estigmatizado.
Funcionários que denunciaram perseguição na gestão passada, por cumprirem suas obrigações, voltaram a ser ouvidos e a sede recebeu lideranças indígenas de diferentes regiões do país nos últimos dias.
A saída dos bolsonaristas não é o único marco da nova gestão. Nunca na história, a Funai teve um indígena na presidência e a indicação de que os próprios indígenas ocuparão postos chaves nas estruturas regionais.
O desafio das demarcações é prioridade e urgente, segundo a deputada, mas não é o único. Joenia aponta o processo de desintrusão e manutenção da segurança dessas populações como o fator a envolver várias frentes e vontade política do governo.
Terras indígenas demarcadas também sofrem violências e invasões, que resultam em mortes, como é o caso dos yanomamis, em Roraima e Amazonas. A estimativa de indigenistas é que haja cerca de 20 mil invasores no território.
"O caso dos yanomamis é uma catástrofe humanitária. Ali, a invasão de garimpeiros levou a um alto nível de violência, conflitos e degradação ambiental, que afeta a saúde com a questão da contaminação por mercúrio", afirma ela.
Ainda de acordo com Joenia, "é importante a regularização a partir da desintrusão. Será necessária uma força-tarefa do governo que vai lidar não só com o Ministério dos Povos Indígenas. Exige a atuação de várias frentes como o Ministério da Justiça, com a força de segurança; Ministério do Meio Ambiente para coibir e reverter danos ambientais porque temos que pensar em mitigações".
Ela avalia que o orçamento da Funai hoje é insuficiente para garantir o que exige a Amazônia, em especial nos territórios marcados por conflitos e influência do narcotráfico. O Vale do Javari, na região da tríplice fronteira (Brasil, Peru e Colômbia) onde foram brutalmente assassinados o jornalista inglês Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira, por exemplo, é considerada a segunda maior entrada de cocaína no Brasil.
"É preciso fortalecer as estruturas e o quadro de servidores que existem da Funai nestas regiões como as frentes de proteção aos povos isolados e os de recente contato. É necessário mais orçamento para trabalhar numa fiscalização permanente e condizente com a realidade que temos hoje, principalmente na Amazônia que exige de nós um trabalho mais eficiente e contínuo", disse.
Na segunda-feira (16), Joenia discursou no evento de comemoração dos 50 anos do CIR (Conselho Indigenista de Roraima), o berço de sua carreira jurídica e política.
Joenia foi a primeira advogada indígena a fazer sustentação oral no STF em defesa da histórica demarcação da Raposa Serra do Sol. A futura presidente da Funai expôs aos "parentes" a dificuldade do quadro de servidores e orçamentário da Funai, pedindo a eles apoio e união para que todos avancem na conquista de direitos.
Joenia disse que o convite a ela foi feito pelo presidente Lula na presença de lideranças indígenas da Amazônia e aceito sob condições: testemunhadas pelas lideranças: autonomia e estrutura de trabalho.
"Eu não queria aceitar o convite sozinha. Sabe por quê? Se não tiver condições de trabalho, se não tiver autonomia … e eu não quero interferência política. Eu quero o apoio do governo para continuar essa missão de uma autarquia que esta a quatro ou sete anos parada", disse acrescentando que Lula afirmou compromisso com os povos indígenas.
Joenia comunicou à assembleia de indígenas que os bolsonaristas que atacaram os direitos indígenas foram exonerados dos cargos comissionados. Disse também que a autarquia não vai virar cabide de emprego de indígenas. "Precisamos de contratações técnicas". Foi aplaudida.
"Imagina, as pessoas que trabalham na Funai têm responsabilidade com áreas que representam 14% do nosso país. Depende de uma boa atuação porque lidam com vidas, vida indígena. Se não cumprirem suas funções institucionais, colocamos em risco vidas de pessoas. Nós vimos nos últimos quatro anos", afirma.
Para a futura presidente do órgão, a Funai passará agora por "um recomeço".
"É uma reconstrução chegar aqui na Fundação Nacional dos Povos Indígenas. O próprio nome já é uma mudança, no sentido que traz a participação e o retorno dos povos indígenas para a Funai. Tem uma disposição e mudança dos servidores públicos para incluir e não excluir. Antigamente, as portas eram fechadas. É uma mudança para melhor, no sentido de retomar as obrigações."