Lá para trás, num tempo que de tão longe não pode ser, o Sol era a única fonte de luz e calor para gentes de tantos lugares. Afora a luz solar, só o poderoso Raio, seguido de seu vozeirão, que de raro em raro, provocava encontros entre a nuvem e a terra para produzir fogo. E a nuvem-terra consagrava piedosas oferendas de labaredas, a cozinhar alimentos, iluminar noites, aquecer corpos.
E o fogo da nuvem-terra atinava sua qualidade de quem tem força e pela qual passava a ser estimável. Mas, as gentes queriam o fogo, aquele que não podia ser tocado, intuitivo às suas vontades. O Raio, quem ligava a nuvem à terra, era impiedoso: labaredas descendiam a seu talante. Luz e calor não poderiam estar inseparavelmente ligados ao Sol e ao Raio. Em tensão, as gentes, com suas mãos fechadas a guardar vaga-lumes e suas luzinhas para aquecê-los durante as noites, caminhavam pela trilha da história em busca de outra fonte.
Entre gentes e bichos, que conversavam entre si, chegavam até ao Urubu-rei bicéfalo, que erguia sua moradia na lonjura do céu, distante dos outros pássaros. Possuidor do movimento do Sol nascente ao poente, também dono do fogo, comedor de carniça. Em tenção, para roubar o fogo do Urubu-rei, um encontro marcado. Juntos, gentes, a enorme ave e a carniça.
O Urubu-rei, sabedor da tenção das gentes e de que o fogo não poderia faltar, entregava a brasa, guardada debaixo de sua garra, que cresceria em faísca. E do ardor do pulmão, ensinava o fôlego a provocar o fogo pelo atrito de pedras ou madeiras dadas pela enorme ave.
O fogo transformou a sobrevivência das gentes de todo canto, a dissipar o medo noutrora. E o fogo caminhava pela linha da história… E mais e mais e mais gentes chegando… Em confiança mútua, ao pé das fogueiras acesas, o segredo do fogo foi compartilhado no acolhimento da diversidade. O acordo com o fogo sustentado na reciprocidade entre gentes, ancestralidade, espíritos da natureza, olhos d’água, bichos, pássaros, pedras, árvores. O fogo, a chama do pulmão, aproxima, não repele.
E no tempo que se leva em contas, mais e mais e mais gentes chegaram. O fogo não nasce mais da chama do pulmão. Afasta, repele, arde. O fogo não pode faltar. O raio do grito de guerra se fez soar. Gritaram as gentes da comunhão, a pensar no Urubu-rei: o fogo é nosso, não é deles. O fogo é nosso, não é deles. O fogo é nosso, não é deles. O fogo é nosso, não é deles.
Perpétuas desconfianças empurram horas ardentes. Rivais em potencial em tensão conquistam espaços em momentos de guerra a transtornar verdes em folhas por verdes em notas.
O acordo com o Urubu-rei se desfez.
*Texto integrante da exposição “Atenção a tensão”, de Caio Ribeiro e Santian, projeto realizado com apoio da Coordenação de Cultura e Vivência da UFMT, que trouxe as queimadas em Mato Grosso como tema (https://atencaoexpo.wixsite.com/abertura).
Anna Maria Ribeiro Costa é etnóloga, escritora e filatelista na temática ‘Povos Indígenas nas Américas’.