Opinião

Jacutinga: Homens e Bestas-Feras

Não chegou ao fim o triste episódio da “fila do ossinho” em Cuiabá. Amplamente divulgado na mídia local e nacional (Fantástico, Jornal Hoje e Jornal Nacional) e internacional (El País, jornal espanhol), o fato escancarou o crescimento acelerado da pobreza, da insegurança alimentar. Da fome. A “fila do ossinho” é formada por centenas de pessoas que buscam ossinhos doados por um açougue do bairro CPA 2. A doação vem sendo feita há mais de uma década e o número de pessoas aumenta consideravelmente.

A insuficiência alimentar no Brasil não resulta da relação entre fome e a pandemia de Covid-19. Como é sabido, ela ocorre cotidianamente e de modo permanente. Contudo, o somatório fome + Covid-19 é = tragédia humanitária. E mais: a fatídica fila revela que “a fome é uma questão política em qualquer que seja a sociedade”, análise expressada na produção científica do ativista recifense do combate à fome, Josué de Castro (1908-1973), especialmente na “trilogia da fome” (Geografia da fome, 1946; Geopolítica da fome, 1951; O livro negro da fome, 1960).

Em Cuiabá, depois da divulgação nos meios de comunicação nacional e internacional, a “fila do ossinho” cresceu, atravessou o ano de 2021. A fio, percorre meses de 2022. Com o agravamento da fome, aumentou mais a quantidade de pessoas que passam horas em busca de doações de ossinho, resultado do processo de desossa do boi. É o que sobra da divisão da carne. Parte que passou a ser tão cobiçada. De acordo com os critérios do Banco Mundial, há 33 milhões de brasileiros passando fome e 15% não tem o que comer.

O mês de Agosto abriu com uma declaração bombástica. O governador de Mato Grosso, pré-candidato à reeleição, com apoio do presidente, criticou a imprensa por noticiar a formação de filas para doação de ossos, pois o açougue distribuiu aos moradores “ossos de qualidade”. E, ainda: que “os ossos distribuídos pelo açougue dão um prato delicioso, consumido em restaurantes como ossobuco, corte de carne em rodelas que inclui ossos”, típico da cozinha italiana.

As notícias estarrecedoras sobre a fome fez Jacutinga voar preteritamente até alcançar os idos dos anos de 1980. Já havia deixado o Rio de Janeiro, sua cidade natal, para morar com os grupos da etnia Nambiquara, a oeste de Mato Grosso. Com eles vivenciou no dia a dia o conceito de espaço social e suas inter-relações entre um agrupamento humano e o seu meio. De como o Nambiquara constrói individualmente e coletivamente seu “espaço social alimentar” (termo do etnólogo vietnamita George Condominas, 1911-2011).

A discussão sobre a “fila do ossinho” levou Jacutinga aos tempos da vida na aldeia, quando foi convidado a participar de uma caçada com os amigos indígenas. Nesse momento se inicia o comportamento alimentar, regido por regras e tabus. Depois de uma longa incursão venatória pelo cerrado, um tiro de espingarda. Animal abatido. Um veado campeiro. Jacutinga incomodado com o corpo do mamífero, ainda quente, que jazia sobre a vegetação rasteira.

Na aldeia, em estado de plangência, a ave ouviu a voz de Daniel Wakalitesu a lhe oferecer a faca para fazer a partilha da carne. Ainda que sabedor de que o corpo do animal deveria satisfazer igualmente a todas as família da aldeia, desconhecia os procedimentos da partilha. Olhou ao redor. Todos aguardavam felizes por sua parte da carne. Agachado, dividiu o veado campeiro pelas famílias, observado o número de seus integrantes. A alegria dos indígenas dissipava o sentimento de tristeza de sua primeira caçada. Ao fim da partilha, Jacutinga sentiu-se bem. Só percebeu que não reservou uma porção da carne para si quando o amigo Daniel lhe deu uma fração do que havia recebido para sua extensa família. E assim Jacutinga passou a integrar o “espaço social alimentar” Nambiquara: “a caça, o comestível, a produção alimentar, o culinário, os hábitos de consumo alimentar, a temporalidade e as diferenças sociais.”

Jacutinga experimentou uma das tarefas mais difíceis da década em que morou junto ao povo Nambiquara, pois a partilha da caça importa conhecer os moradores da aldeia e garantir a satisfação de todos, independentemente de terem ou não participado da caçada. Para o povo Nambiquara, o que distingue os homens dos animais é o comportamento. A falta da solidariedade e fraternidade transforma os seres humanos em bestas-feras, o que ocasionaria no fim mundo, como de fato já ocorreu uma vez, no “tempo de antigamente”.

Criticar a ação da imprensa por divulgar a formação da “fila do ossinho”, afirmar que o osso doado é de qualidade e encobrir a verdade é estar na contramão da ajuda humanitária. Nas palavras de Bertolt Brecht, “aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira, este é um criminoso.” Ainda no caminhar do poeta e dramaturgo alemão,

 

Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural.
Pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural.
Nada deve parecer impossível de mudar.

Anna Maria Ribeiro Costa é etnóloga, escritora e filatelista na temática ‘Povos Indígenas nas Américas’.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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