Artista: Eileen Jimenez
Com os pés em 2022, em estado de estarrecimento com a imagem que o brasileiro não indígena ainda desenha (ou rabisca?) do brasileiro indígena, socialmente envolto nas pregações da “democracia materialista” que incinera saberes milenares ofertados pelas cosmologias indígenas. Para onde foram as formas desenhadas pelas fumaças oriundas das labaredas do Museu Nacional que se desprenderam dos 20 milhões de itens como almas? Certamente atravessam a trajetória Inferno-Purgatório-Paraíso, não para retornar unicamente aos valores greco-romanos, ocidentais, mas para fazer com que reconheçamos e vivenciemos as epistemologias do Sul.
As “epistemologias do Sul”, termo que pedimos emprestado a Boaventura de Souza Santos e Maria Paula Meneses (2010), estão em constante combate aos padrões epistemológicos hierarquizantes, a banir a ideia de um conhecimento ocidental culturalmente homogêneo. No caso do Brasil, especificamente, as epistemologias locais vêm sendo suprimidas e invisibilizadas desde o processo de colonização europeia.
Ao trilhar uma postura decolonial, o pensar decolonial acompanha atentamente as perspectivas da linguagem estética do artista plástico Joaquín Torres-García (1990) e suas acepções sobre o universalismo construtivo latino-americano, ambas voltadas à autonomia da arte latino-americana, avessas à dependência colonial europeia. Bradou Torres-Garcia: “Nosso Norte é o Sul” (1990), ao desenhar o mapa da América Latina de cabeça para baixo.
Contrário à homogeneização e padronização dos saberes, no rumo do artista plástico uruguaio, nos unimos com Paulo Freire que se inspirou em Marcio D’Olne Campos e criar o verbo sulear, uma permissão ao “SULeamento”, caso contrário, “não seria uma atitude de indiferença, de menosprezo, de desdém para com as nossas próprias possibilidades de construção local de um saber que seja nosso, para com as coisas locais e concretamente nossas?” Explica Freire: “apesar disso, nossas escolas, continuam a ensinar a regra prática do Norte, ou seja, com a mão direita para o lado do nascente (Leste), tem-se à esquerda o Oeste, na frente o Norte e atrás o Sul.”
Saberes indígenas se fazem necessários em espaços escolares enquanto instrumento propiciador de um pensar decolonial e como meio de reconhecimento de epistemologias invisibilizadas pela ciência moderna. Caminhos desenham-se… Os povos indígenas estão aí, dispostos a nos ensinar. Quem sabe um deles possa ser a mudança de olhar o Brasil para todas as suas gentes. Mudança inspirada nas Ideias para adiar o fim do mundo, apresentadas por Ailton Krenak. Quem sabe nós aprendamos a lição de que “deixar de ser índio” traria como consequência a inserção de populações indígenas nas sociedades capitalistas, neoliberais, transformando-os em subalternos, engrossando quantitativamente o número de explorados e excluídos não indígenas?
É preciso fazer uma releitura contemporânea do Brasil para que sejam conhecidas e reconhecidas outras paisagens; para libertar o “dragão da maldade”, a cuspir fogo, como anunciado na obra cinematográfica glauberiana. Como tentou nos ensinar Drummond, é preciso nutrir grandes esperanças. Talvez possamos ter a coragem de ensejar um novo trajeto para nosso país – transformar uma tragédia em uma nova fase civilizatória brasileira onde as faces de nossos ascendentes possam ser reconhecidas com a dignidade merecida. Como nos ensinou Ailton Krenak, “quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo de humanos, nós liberamos esses lugres para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista.
Anna Maria Ribeiro Costa é etnóloga, escritora e filatelista na temática ‘Povos Indígenas nas Américas’.