As veias abertas da América Latina, de autoria do escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), foi simultaneamente lançado em Cuba, México e Argentina em 1971 e traduzido para o português em 1978 pela editora Paz e Terra. Por empréstimo, um ano depois, um exemplar chegou em minhas mãos. Estava cursando História no IFCS – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Eram tempos em que a leitura do Veias abertas significava sua apreensão e a prisão de quem o lia. O texto, com base marxista, trouxe vozes há muito silenciadas e, décadas mais tarde, nos dizeres de Galeano, uma história (infelizmente) atual.
Me lembro bem, como se fosse hoje. A cada página, os dados quantitativos e qualitativos sobre escravidão, fossem eles referentes aos povos indígenas, africanos ou afrodescendentes, me fartavam de um mal-estar físico traduzido em constrangimento, embaraço, repugnância. E, ao término da leitura, ainda tão crua nas teorias de esquerda, pude verificar que o tamanho da maldade humana era ainda maior do que aquela que conheci pelos livros de História lidos às escondidas e pelas aulas do professor Manoel Maurício de Albuquerque, mestre-escola, bem-amado, historiador maldito, como escreveu a historiadora Eulália Maria Lahmeyer Lobo em um livro a ele dedicado postumamente.
O tempo passou…
A cinquentenária As veias abertas da América Latina, longe de ser uma obra panfletária e isenta de críticas, continua sendo lida, bem-falada ou não. Escrita com uma linguagem sentipensante, Eduardo Galeano possibilita ao leitor a exercitar um pensar sentindo e sentir pensando sobre as histórias das colonizações latino-americanas. Eric Nepomuceno a definiu como uma obra que não era só para entender a América Latina, mas para entender a vida e o mundo, quiçá (agora é por minha conta) para entender a nós mesmos, nossa identidade latina.
O livro tem estrada…
Traduzido para mais de vinte línguas, em cinco décadas, esteve várias vezes na lista dos mais vendidos, ocasiões em que atingiu a marca dos dois milhões de cópias vendidas por ano. Até hoje, é o livro mais roubado nas livrarias da Argentina. Em 2015 na Argentina (ano da morte de Galeano) e em 2017, no Brasil, chegou para o público infantil e juvenil a Coleção Anti-herói, composta por livros biográficos escritos por Nadia Fink e ilustrados por Pitu Saá que tratam de vidas de artistas e líderes das Américas do Sul e Central. E lá está Eduardo Galeano… Um anti-herói que não usava capa ou máscara ou escudo, mas podia ser visto de boina.
Em tempos de ausências do sentipensante que impera a atual governança, o pensamento de Galeano continua na contramão da letargia: Devemos inventar o futuro, não aceita-lo. Não temos que nos resignar às fatalidades do destino, porque a história pode nascer de novo a cada dia.
Anna Maria Ribeiro Costa é etnóloga, historiadora, escritora e filatelista na temática ‘Povos Indígenas nas Américas’.