Opinião

“Cerca, cerca, cerca. Vaca, vaca, vaca. Capim, capim, capim.”

Em um Estado movido pelo capital, onde consumir é a ordem máxima, por que proteger os povos indígenas com culturas tão diferentes da ordem industrial?

Contatos intermitentes entre a sociedade não índia com o povo Nambiquara datam do século XVIII. O Arquivo Público de Mato Grosso, bem como a Biblioteca Nacional e Arquivo Histórico, ambos no Rio de Janeiro, possuem um rico acervo onde centenas de documentos manuscritos comprovam a ocupação Nambiquara em uma extensa região de Mato Grosso.

No início do século XX, mais precisamente em 1907, Cândido Mariano da Silva Rondon adentra o território da “temida nação Nambiquara”, como são referendados em diversos desses manuscritos. Inicialmente, seringueiros e poaieiros tentaram invadir o domínio Nambiquara para a exploração da borracha (látex) e da poaia (ipecacuanha).

Linhas desenhadas pelas trilhas abertas pelos seringueiros e poaieiros deram início ao contato ininterrupto com o povo Nambiquara, formado por mais de trinta grupos. Outras linhas passaram a desenhar (ou rabiscar?) a região Nambiquara que, de acordo com o antropólogo Edgar Roquette-Pinto, que estudou o Nambiquara no ano de 1912 a pedido de Rondon, abrangia a interlândia das cabeceiras do rio Roosevelt até as cabeceiras dos rios Guaporé e Juruena.

Mas, essa extensa região continuou a ser invadida por diversos agentes de contato. Podemos pensar a região Nambiquara como um emaranhado de linhas que interferiram de modo violento em suas vidas. Depois das linhas da Comissão Rondon, que abriram trilhas e esticaram as linhas dos fios do telégrafo vieram as linhas dos poaeiros e seringueiros que deu início à redução drástica da população e do território Nambiquara; depois veio a linha do Serviço de Proteção aos Índios que não deu conta de proteger o território e a população indígena. Veio a linha da escrita, imposta pelos missionários norte-americanos que codificaram a língua para traduzir a Bíblia, desconsiderando a religião indígena. Chegou a Funai e bordou o território Nambiquara com linhas da ditadura militar que, ao demarcar seu território, reduziu-o ainda mais, dividindo-o em várias partes, tirando o caráter contínuo, na alegação de “ocupar espaços vazios” em prol do desenvolvimento econômico. As linhas demarcatórias da Terra Indígena Nambiquara, formada por cerrado, imputaram na transferência forçada de vários grupos da etnia Nambiquara para um único lugar, na tentativa de esvaziar o Vale do Guaporé, região de terras férteis.

Enquanto o governo brasileiro era denunciado e julgado pelo Tribunal Russel, na Holanda, os índios, a pé, retornavam às suas terras, de ocupação tradicional, quando tiveram dificuldades em reconhecer de onde saíram: “cerca, cerca, cerca. Vaca, vaca, vaca. Capim, capim, capim”, falou um indígena Nambiquara ao chegar no local onde estavam sua aldeia, roças, cemitérios. Esse momento passou a ser conhecido internacionalmente como “Biafra brasileiro”, uma triste comparação com a guerra civil da Nigéria que durou de 1967 a 1970.

Se antes dos órgãos governamentais o território Nambiquara era contínuo, as linhas demarcatórias trouxeram a partilha: hoje são 11 terras indígenas destinadas ao povo Nambiquara, entremeadas pelas cidades, pela monocultura. Chegaram os madeireiros, os garimpeiros e os palmiteiros. Cada qual com suas ferramentas, abriram mais linhas no interior do território Nambiquara, que embaralharam-se com as linhas anteriores. Para o Nambiquara do Vale do Guaporé, possivelmente esse tenha sido o momento de maior violência física. Os índios, atônitos aos efeitos da agropecuária, viram as cidades brotarem de suas terras e com elas, muitas pessoas, “igual formiga”, como disse um Nambiquara em alusão à quantidade de não índios que chegavam à região.

O século XXI trouxe as linhas de transmissão de energia elétrica, ainda que esticadas no entorno das Terras Indígenas, passando de ponto em ponto, percorrendo milhares de quilômetros até chegar ao seu destino final. Para agravar o emaranhado das linhas, chegaram as linhas impostas pelas PCH, pequenas centrais hidrelétricas, mas de grande impacto ao povo Nambiquara.

O emaranhado de linhas, muitas delas já puídas pelo tempo, encontra-se tecidas na memória coletiva do Nambiquara, como cicatrizes de feridas incuráveis. Assim como seus modos de vida, seus ritos e seus mitos são passados de geração a geração pelos homens mais velhos, as histórias de contato com a sociedade não índia chegam até os dias de hoje aos mais novos.

Em completo embaraço, há mais de 100 anos as linhas tecidas pelos diversos agentes de contato vêm conduzindo os índios a um estado de vulnerabilidade. Isso porque os ditames da sociedade brasileira não correspondem aos da sociedade Nambiquara. É preciso disponibilizar aos indígenas mecanismos que os auxiliem a desembaraçar as linhas que impuseram suas vidas à situação de contato com os não índios. Políticas públicas devem ser criadas em prol dos povos indígenas, bem como a implementação do ICMS Ecológico, a exemplo de outros Estados. Para os indígenas, a conquista, consolidação e implementação do ICMS Ecológico representa uma possibilidade de melhoria de vida, a medida em que pode “compensar financeiramente os municípios que possuem restrições de uso do solo de seus territórios por conterem Terras Indígenas e Unidades de Conservação”, contribuindo para o equilíbrio socioambiental de ambas e das populações aí existentes. A adoção de instrumentos específicos, especialmente o ICMS Ecológico, será, sem dúvida, um avanço importante que pode estabelecer um caminho ao convívio mais fraterno, diminuindo a forte discriminação sofrida pelas minorias étnicas, desembaraçando o novelo das linhas tecidas pelos agentes de contato que não levaram em consideração suas formas particulares de viver.

Retorno à questão inicial: Em um Estado movido pelo capital, onde consumir é a ordem máxima, por que proteger os povos indígenas com culturas tão diferentes da ordem industrial? No âmbito legal, a Constituição Federal consagra o direito indígena de manter terras, modos de vida e tradições. Defender os povos indígenas é defender a sociedade brasileira, formada por diversos segmentos. É defender saberes tradicionais. É defender vidas humanas. É defender o cidadão brasileiro. Defende os povos indígenas aquele que conhece a história do Brasil e tem orgulho de ser brasileiro.

Em tempos de obscurantismo político, é preciso denunciar!

Anna Maria Ribeiro Costa é historiadora, escritora e filatelista na temática Povos Indígenas as Américas.

Redação

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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