Ela não era uma tigresa. Ainda mais aos moldes da felina de Caetano. Unhas negras? Na década de 1970? Aos 9 anos? Cortadas rentes, cutículas e cor ao natural. Suas íris, longe da cor de mel. Beleza? Não houvera dado sinal. O espelho denunciara. Sua pele branca distanciara de ouro marrom. Em 1966, não gostara de política, ainda que Humberto Castelo Branco tivera aberto as portas à ditadura militar. Nunca dançara na pista do Frenetic Dancing Days Discotheque, casa de shows de Nelsinho, fundada em 1976, ainda que já tivera atingido a maior idade.
Ela não trabalhara no Hair, musical de exaltação à cultura hippie e de protestos contra o racismo e a guerra no Vietnã. Aquele ano estivera perdido na cronologia biográfica da adolescente que cursara a 8ª série do Ensino Fundamental na Escola Municipal Lourenço Filho, antiga Escola Soares Pereira.
Quantos “nãos”! A composição de Caetano em nada lembrara o cotidiano da garota. Mas, as garras da Tigresa marcaram seu coração. O que Tigresa tivera em comum com a adolescente prestes a finalizar o ensino Fundamental?
Naquele último ano do Fundamental, a Escola Lourenço Filho notificara aos pais dos alunos da 8ª série, via caderneta escolar, que haveria no Instituto de Educação uma palestra sobre prevenção ao uso de drogas. Na própria caderneta, os pais deveriam expressar sua concordância. Depois de receber várias recomendações dos pais, seu passaporte recebera o carimbo tão desejado. Nem seus pais, nem a garota sabiam o que significaria aquele dia no Instituto de Educação.
Na primeira fileira, a garota ouvira, sem piscar, os malefícios do consumo de drogas. Concomitante à palestra, diversos objetos ligados ao tema eram apresentados. Dentre tantos, um deles chamara a atenção da garota da primeira fileira: um livro de capa dura que preservava algumas de suas páginas iniciais e finais. As demais páginas eram cortadas em toda a extensão da mancha gráfica, preservando apenas suas margens. Esse recorte transformava o livro em uma caixa para transportar drogas ilícitas. Uma aficionada por caixas, a garota se encantou com o que via: um livro-caixa.
O inesperado do inesperado.
O evento foi encerrado com uma apresentação artística. No palco, uma pessoa transexual vestida de tigresa/Tigresa. A indumentária – roupa com estampa de pelagem de tigres, colante ao corpo escultural, sapatos com saltos grossos e extremamente altos – unia-se à maquiagem que imitava padrões de listras de tigres. Seu roncar, trazia a canção de Caetano que ecoava em todo o auditório do Instituto de Educação.
Na fila do gargarejo, a garota se esqueceu do que fora fazer ali. Ela descobria em Tigresa outro mundo, totalmente desconhecido do seu habitual. A arte de Tigresa – na pessoa transexual e na composição musical – denunciava aos adolescentes haver diferentes possibilidades e combinações de cores, de formas, de sons, de movimentos. De vivências. Na figura de Tigresa, o reconhecimento/respeito ao Outro, ao diferente, à diversidade em momentos de repressão. Naquele dia, Tigresa fez com que a garota do Lourenço Filho acreditasse que “o mau é bom e o bem cruel”.
Sexta-feira passada, a costumeira programação musical da Rádio Senado FM 102.5 aproveitou a folga da CPI da Covid-19. Tigresa chegou à casa ex-aluna do Lourenço Filho. A estrutura poética de Tigresa trouxe tempos e coisas passadas.
Discute-se, ainda, quem foi a musa inspiradora de Caetano Veloso ao compor Tigresa – Sônia Braga e Zezé Motta – ou o próprio compositor, que anos mais tarde afirmou ser ele mesmo a Tigresa. Para a ex-aluna da Escola Lourenço Filho, Tigresa, na pele e na alma do travesti, foi sua musa inspiradora ao divisar diversidades ainda invisibilizadas pelo afã de uma ordem verde-oliva.
Ao passar a vista de olhos ao passado, para a ex-aluna do Lourenço Filho, escola municipal ladeada pelo rio Maracanã e pela Praça Xavier de Brito, Tigresa representou um momento Kairós. Momento presenteado pelo “deus do tempo oportuno” de sua adolescência que apresentou outros modos de pensar, outra moral. Aquela pessoa anônima transvestida de Tigresa ensinou à adolescente que “tudo vai mudar/ Porque ela vai ser o que quis, inventando um lugar/ Onde a gente e a natureza feliz vivam sempre em comunhão/ E a tigresa possa mais do que o leão.”
Na noite seguinte, a ex-aluna do Lourenço Filho transformou pela lógica onírica a passagem de Tigresa pela Rádio Senado e todo seu rememorar. Tal qual no auditório do Instituto de Educação, na fila do gargalo, viu saltar uma tigresa (ou Tigresa?). Em seu pensamento, não sabia se a tigresa/Tigresa estava dentro dela ou se ela estava dentro da Tigresa/tigresa.