A mídia televisiva brasileira anunciou que o Parque Keukenhof, na Holanda, está em festa! Nascido no período do Romantismo europeu, em 1857, o jardim ornamentava o Castelo de mesmo nome. Em 1950 seus portões foram abertos ao público, atraindo gentes de toda parte do mundo. No maior jardim de flores do mundo são plantados anualmente sete milhões de bolbos de flores que serão vistas por 1 milhão de visitantes.
Mas, por que falo de Keukenhof no “Dia do Índio”? Enquanto assistia ao noticiário, a vislumbrar as grandes extensões de plantações multicoloridas de tulipas, meu pensamento deixou os países baixos e chegou ao cerrado do planalto central. O cerrado dos grupos Nambiquara, onde vivi bons anos de minha vida. Rapidamente as tulipas holandesas foram substituídas pelos doces cajuzinhos nativos do cerrado.
Neste “Dia do Índio”, peço trégua! Não quero falar do descaso do governo brasileiro na tragédia indígena em relação à Covid-19. Não quero falar do número de assassinatos contra indígenas que, a cada ano, vem aumentado vertiginosamente. Não quero falar do agravamento da ofensiva sobre as terras indígenas de ocupação ancestral; do esbulho possessório das terras indígenas. Não quero falar da principal motivação para as invasões que visam disponibilizar terras indígenas para o agronegócio, mineradoras, madeireiras, PCHs. Não quero falar da contaminação do solo e da água por agrotóxicos e incêndios. Não quero falar das centenas de garimpos instalados na Terra Indígena Munduruku. Não quero falar da discriminação étnica sofrida pelos povos indígenas. Não quero falar da mortalidade indígena na infância. Não quero falar da vida precária dos Guarani Mbya nos acampamentos às margens das rodovias. Não quero falar do orçamento das políticas indigenistas.*
Neste “Dia do Índio”, peço trégua! Quero falar do extenso manto vegetal nativo de cajuzinhos, elhu. Lembro-me como se fosse hoje. Os índios me chamaram para uma expedição de coleta. – Vamos comer caju, Anna? Carioca recém-chegada à aldeia Nambiquara, imaginei um enorme pé de caju, dado o número de pessoas que iam chegando. Depois de uma estirada, para meu espanto, os pés de cajus eram rasteiros, mal atingiam às canelas. Alguns deles, tão carregadinhos, não aguentavam o peso das frutas, ainda que miúdas. O verde-vermelho do manto dessa espécie rasteira perdia-se de vista. Era só abaixar, coletar e comer as doces frutinhas que pareciam de brinquedo. Os pequenos pés de cajus entremeavam outras espécies de vegetais, ignoradas por nós, ávidos por adocicar nossas bocas com o sabor da natureza, frutos também consumidos por animais silvestres. Ao retornar daquela viagem atemporal, me perguntei por onde andavam as matérias televisivas sobre a imensidão dos campos ornados com os pequenos cajuzinhos. Por onde andavam os saberes locais, os saberes do Sul, as epistemologias do Sul.
Neste “Dia do Índio”, peço trégua!
Amanhã é outro dia! Voltarão à tona as questões de violações de direitos e violências cumulativas e sistemáticas praticadas contra os povos indígenas ao longo dos séculos.
*Fonte: Centro Indigenista Missionário (CIMI)