Os grupos de Alcoólicos Anônimos de Cuiabá, apesar de não realizarem um levantamento oficial, tem notado que há um aumento de casos de alcoolismo e recaídas diante da pandemia da Covid-19. A solidão e o medo, podem ser as principais causas para o avanço da doença.
O alcoolismo é uma doença crônica que não tem cura, afeta o comportamento do indivíduo, além de aspectos socioeconômicos, e é a chave para uma falsa sensação de bem-estar, funcionando como um escape para problemas pessoais.
De acordo com a psicóloga Maria de Lourdes, a doença é caracterizada pela perda de controle sobre o consumo de substâncias, negação, abandono progressivo de prazeres ou interesses, abdicação da família, trabalho, casa e saúde.
“É uma doença progressiva e fatal. As drogas, o álcool, cumprem a função de evitar a dor de viver. Cada um está sozinho em seu sofrimento e vive com vergonha de dizer ao outro que sofre”, esclarece.
“Tem pessoas que se drogam para procurar amparo, como se a droga deixasse aquele sujeito pleno e perfeito. Desaparece a descontinuidade, ele está completo. E para outros é o contrário. A droga, o álcool, é para se detonar, se afastar dessa sensação de perfeição, de completude que o sufoca”.
A solidão, a falta das reuniões e do companheirismo, diante do isolamento social, de uma doença grave e desconhecida como a Covid-19, acompanhado do medo e da insegurança, contribuem para as recaídas durante o tratamento do alcoolismo.
Conhecendo o álcool
Nos próximos parágrafos serão descritas as histórias e os sentimentos de quatro pessoas, sendo elas Cláudio* (68 anos), Fernanda* (54 anos), Luiz* (27 anos) e Renan* (29 anos). Além de frequentarem o A.A, eles tem em comum o convívio com o álcool desde a infância e adolescência. Todos os nomes estão em sigilo, seguindo a tradição dos Alcoólicos Anônimos.
Fernanda hoje é cozinheira, mas já na adolescência era conhecida como “Porrão” pelos amigos. Para ela, era normal beber até apagar, além de dormir em mesas de bares e boates. No final das contas, terminava com uma ressaca emocional e sequer conseguia concluir estudos ou trabalhos.
Luiz atualmente é arquiteto, mas ao 17 anos sua vida se tornou caótica e para aliviar as emoções, principalmente para anestesiar a dor que sentia, começou a beber. O adolescente se tornou dependente da companhia do álcool.
Renan é engenheiro civil e começou a beber com 10 anos de idade, por que era legal. Aos 12 anos já achava o líquido gostoso e se sentia adulto. Renan ficou bêbado, pela primeira vez, aos 13 anos.
“Eu achava muito gostoso o sabor do vinho e misturado com a pinga me dava uma sensação boa. Percebi que conseguia beber em maior quantidade e mais rápido do que os outros. Fui ficando bêbado e me soltei, eu que sempre fui muito tímido, fiquei tagarela e engraçado. Naquele dia eu passei mal, vomitei muito, tive uma ressaca forte depois, mas mesmo assim valeu a pena o momento e as conversas proporcionadas pela festa”, compartilha.
A bebida continuou por toda a sua juventude, inclusive começou a fumar maconha, sem seus pais perceberem. Enquanto estava no ensino médio, seu pai faleceu de câncer e o jovem encontrou mais uma razão para beber. Ficar bêbado o fazia esquecer da realidade, de responsabilidades e da saudade.
Por fim temos Cláudio, coordenador do A.A em Cuiabá, que também conheceu as bebidas alcoólicas na infância. Os familiares deixavam nos copos os restos de licores caseiros e a criança bebia. Somente após os 17/18 anos que começou a beber cerveja e ficou bêbado depois de adulto.
Tanto Fernanda, com 34 anos, quanto Luiz, aos 20 anos, foram orientados a conhecerem o A.A através de amigos que perceberam a falta de controle com as bebidas alcoólicas.
“O meu amigo enxergou em mim o que eu não conseguia ver. Era uma garota problemática, cheia de rancores, raiva, ressentimentos e que bebia para resolver esses problemas”, desabafou Fernanda.
Depois de muitos problemas causados pela bebida, Renan tentou parar sozinho, de várias formas, mas não conseguia. Após procurar uma psicóloga, aos 27 anos, ela o indicou ao Alcoólicos Anônimos.
Com Cláudio a doença progrediu, ele bebia muito e em quase todos os finais de semana. Certo dia, começou a beber em uma sexta-feira a noite, após o expediente de trabalho e só parou na quarta-feira. Ele foi socorrido pela empresa em que trabalhava, que o orientaram a procurar o A.A, aos 32 anos.
Uma vida com A.A
“Foi um grande alívio descobrir que eu não era o único que passava pelas coisas que eu sentia. Vendo as pessoas lidando com seus problemas e sentimentos, conseguindo ter uma vida feliz sem precisar beber, me fez acreditar que eu poderia viver sem o álcool”, desabafa Luiz.
“Ao frequentar as reuniões, foi sugerido um programa de 12 passos para a recuperação da doença do alcoolismo. Através dos companheiros, do grupo e do programa, visualizei a vida sobre um novo ponto de vista, até então desconhecido, o de viver sóbrio”, compartilha com o Circuito Mato Grosso.
Logo no início das reuniões com o grupo do A.A, Renan se identificou com o que ouvia. Parecia que estavam relatando sua própria vida, seus problemas eram semelhantes com os demais, as bebedeiras e as tentativas frustradas de parar com o vício.
“Eu me senti seguro indo às reuniões de A.A. Senti que finalmente iria conseguir largar a bebida. Ouvir aqueles depoimentos, conversar com pessoas que tinham o mesmo problema que o meu me dava muita força. Então resolvi me tornar membro de Alcoólicos Anônimos”, declara Renan.
Durante essa pandemia, Fernanda percebeu o quanto é difícil ficar longe das reuniões e dos companheiros. Vivendo um dia de cada vez, no A.A eles cuidam de seu emocional e espiritual.
“Pela maneira desenfreada de beber, preciso me policiar diariamente, tomando cuidado para não voltar a cair novamente. Hoje participo mais das reuniões virtuais, converso com algum companheiro, ou alguma pessoa de confiança, quando surge um mal estar ou problema que não consigo resolver sozinha. Tento não acumular emoções negativas”, diz Fernanda.
O A.A e os 12 passos
Em Cuiabá existem 16 grupos de apoio dos Alcoólicos Anônimos. Um local onde cada um busca por apoio, não se paga taxas ou mensalidades, que é mantido apenas com contribuições voluntária de seus próprios membros, cujo único requisito é o desejo de parar de beber.
Existem 12 passos que os participantes devem seguir para uma participação plena no grupo.
“Fundamenta a recuperação dos pacientes em princípios espirituais que possibilitam um processo de autoconhecimento, a crença em um Poder Superior, a confiança em outro ser humano, a reformulação de hábitos saudáveis, o exercício do perdão, a prática da responsabilidade, e o desfrute da liberdade espiritual”, pontua a psicóloga Maria de Lourdes.
De acordo com Cláudio* os passos são:
1- O indivíduo precisa admitir para si o problema com a bebida, que não consegue se controlar.
2-Acreditar em alguma força superior que possa ajudá-lo. Por exemplo, o próprio grupo ou a experiência dos companheiros mais antigos.
3 – Se puder acredite em Deus. (Não é condição necessária acreditar em Deus. No A.A existe Ateus, agnóstico e os que creem).
4 -Refletir sobre si, para se descobrir e se reencontrar. Descobrir onde, quando e a razão de ter se tornando escravo do álcool.
5 – Conversar com alguém, seja religioso, terapia ou companheiro do A.A. “Chamamos isso de apadrinhamento ou troca de experiência, e é um momento de muita seriedade porque alguém se desnudando para uma outra pessoa, confessando seus mais graves defeitos e com isso precisamos ter muita seriedade”, afirma Cláudio.
6/7- Fala sobre humildade e deixar que Deus remova os defeitos de caráter que sabem que tem e que já conversaram com um padrinho ou madrinha. A sugestão é trabalhar em cima dos sete pecados capitais.
8/9 – Sugere fazer uma lista de todas as pessoas que tenha ofendido e procurar reparar os danos causados, através de pedidos de desculpas ou de perdão.
9- Reconhecer os erros diários e se prontificar a corrigi-los.
11- Se possível rezar ou orar ao Deus que a pessoa acredita, pedindo a Ele somente forças para suportar o fardo de cada dia.
12 – Praticar os princípios e passa-los adiante, levar a mensagem e dar de graça o que de graça recebeu.
“O AA não está ligado a nenhuma seita ou religião, partido político, nenhuma organização ou instituição. O nosso objetivo primordial é nos mantermos sóbrios e ajudar outros alcançarem a sobriedade”, finaliza Cláudio.