No telão do Estação, arrisquei assistir uma pegada de terror adaptada dos contos Grimm: Maria e João: o conto das bruxas. Último filme que assisti em fevereiro de 2020, antes do sinistro mês de março, quando a Covid-19 chegou ao Brasil, sem que nada soubéssemos o que realmente estava acontecendo, aconteceria… O hábito de ir ao cinema, passado por meus pais, integra meu dia a dia. E, por conta do isolamento social, tornou-se um hábito quase diário. Minha lista de filmes assistidos em 2020 superou disparadamente o número dos anos anteriores. Nunca havia anotado tantos filmes em minha caderneta de “filmes assistidos”.
Neste ano, com suas portas recém-abertas, minha volta ao cinema foi radiante de alegria. Naquela noite, ao sair de casa, me senti “vacinada”, como se tivesse uma ingênua certeza de estar driblando o mutante vírus genocida. Este estado deu-se pela saudade de uma pátria chamada cinema. Sensação que chegou a ser palpável e rejeitei ser uma ficção. Tinha sede do encontro com amigos, do ambiente do cinema, da tela gigantesca, do cheiro característico das salas de projeção, do “escurinho do cinema”, “longe de qualquer problema, perto de um final feliz”. Só faltou pipoca.
No Cine Teatro Cuiabá, só podia ter sido lá, afinal, meu estado um tanto nostálgico combinava com sua ambientação do início dos anos de 1940. A programação? Singular: Barão de Melgaço, o bretão cuiabanizado Augusto Leverger, um longa-metragem que percorre caminhos fluviais, do estuário Prata, um desague de águas do Paraná, do Uruguai, do Atlântico, até ao Cuiabá, à fronteira hispânica do século XIX. Do início ao fim, meus olhos fixos ao telão tentavam contemplar em detalhes a diversidade das fontes pelas quais historiadores têm profundo apreço. A narrativa histórica conta com recursos bastante variados, ligados por uma linha quase invisível, imperceptível, mas com uma resistência vigorosa para, com muita Arte, biografar o Barão de Melgaço.
Lembrei-me do livro Introdução à História e a ideia fixa de seu autor, Marc Bloch, com o “ofício do historiador”. Afinal, “diga-me lá para que serve a história?”. Ao rechaçar a desgastada resposta de que a História “é a ciência do passado”, Marc Bloch diz que “é a ciência dos homens no tempo. O historiador não pensa apenas o humano. Cumpre utilizar uma linguagem finíssima, uma cor adequada ao tom verbal, para traduzir bem os fatos humanos, e portanto para os penetrar”. Essa linguagem finíssima, essa cor adequada ao tom verbal estão presentes na tradução dos feitos do cientista “Bretão cuiabanizado”. A reconstrução do cenário de época e o emprego de fontes primárias, cartográficas, iconográficas, bibliográficas unem-se à voz narrativa, unem-se aos estudiosos da História de Mato Grosso, do Brasil; da memória e da história local; da construção da história social.
Falando em história local, ainda em frente ao telão, pensei no ensino de História ofertado no Ensino Fundamental e Ensino Médio. Refleti sobre a didática da História nesses espaços. O que pensam professores, crianças e adolescentes? Fico imaginando o Barão de Melgaço entrando nas escolas deste estado pelo cinema. Como usar o cinema na sala de aula, como tão bem nos ensina o historiador Marcos Napolitano. Se é sabido que há mais de um século o cinema vem provocando nossa maneira de ser, a comover bilhões de pessoas por esse mundo afora, por que não levá-lo com mais frequência para a sala de aula?
Pela imponente história e impecável produção, ao término do longa-metragem uma carioca da gema deixou o Cine Teatro, orgulhosa de ser mato-grossense.
Barão de Melgaço, o bretão cuiabanizado Augusto Leverger
Produção: José Paulo Traven e Leonardo Santana
Roteiro e Direção: Leonardo Santana
Produção Executiva: José Paulo Traven
Realização: AMISCIM, ALMT, SECEL