Em nada lembrava o homem da noite anterior. Era outro quando evocou seu poder xamânico na kâti pouco iluminada. Com assovio agudo invocava seus piajes. Dialogava com senhores de vários domínios e de poderes diversos. Entre nuvens de fumaça se debruçava sobre a rede de algodão. Lutava para curar a criança em febre. Atravessara os reinos sombrios dos rios subterrâneos. Cortara os ventos e campos à procura de uma de suas almas perdidas. Em transe, falara a língua das onças e dos mortos para salvar sua vida. Amanhecera. Agora estava ali, sentado no banco zoomorfo. O olhar perdia-se no chão do taséra. Daquele homem-jaguar, poderoso e altivo, nada restara. O dia trouxe consigo a realidade do jugo colonial.
Edir Pina de Barros é membro da Academia Brasileira de Sonetistas e da Academia Virtual de Poetas de Língua Portuguesa. Seus poemas estão disponíveis em vários livros, antologias, revistas eletrônicas e nas mídias sociais. É doutora e pós-doutora em Antropologia pela USP, professora aposentada (UFMT). Nasceu no Mato Grosso do Sul e hoje reside em Brasília.