A patologista clínica Natasha Slhessarenko avalia que, neste momento de crise sanitária provocada pela Covid, é fundamental conscientizar a população a respeito da importância de se vacinar. Segundo ela, além do vírus, a humanidade enfrenta um outro "inimigo" com alto potencial de destruição: a propagação de notícias mentirosas.
Para a especialista, "pessoas do mal" disseminam fake news contra a vacina e é preciso combater a prática.
Formada pela UFMT e com mestrado na USP, a médica ressaltou a importância de que políticos e sociedade estejam alinhados neste momento. Nesta entrevista, Natasha também criticou a politização da vacina e do chamado tratamento precoce.
Ainda na conversa, ela falou sobre as mutações do vírus e as possíveis causas da explosão de novos casos, além de criticar a falta de planejamento e empenho do Governo Federal em obter uma vacina.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
Reportagem – Qual foi o sentimento da senhora ao ver o início da vacinação contra a Covid no Brasil?
Natasha Slhessarenko – Sentimento de muita alegria e muita esperança de dias melhores. Realmente para uma doença como essa, de características virais e respiratórias, as medidas que já estamos tomando como uso de máscaras, álcool em gel, distanciamento, são importantes. Mas é a vacina que vai conseguir diminuir a circulação do vírus entre nós. A semana começou com outro olhar, a semana estava com outro brilho e outra vida, porque finalmente nos juntamos aos mais de 50 países que já estavam se vacinando.
Então, como não comemorar? Como não ficar feliz depois de um ano duro como foi o ano passado. Tanta gente que morreu, que perdeu o emprego.
Reportagem – Pela falta de insumos, corremos o risco de ter um processo de vacinação muito lento. Isso, de certa forma, vai atrapalhar o combate ao vírus, não é mesmo?
Natasha Slhessarenko – Com certeza! Acho que no nosso País faltou planejamento para que pudéssemos ter essa vacina antes, com todos os insumos. Como o Doria [governador de São Paulo] fez, obviamente ele tem o Instituto Butantan perto, mas os outros governadores ficaram muito na dependência do Governo Federal. Também faltou planejamento do Governo Federal para que tivessémos vacinas num tempo mais rápido. O Reino Unido começou a vacinar um mês antes de todos e isso pode fazer uma diferença muito grande.
Quantas pessoas poderiam ter sobrevivido se começassemos antes? Nunca vamos saber. Faltou logística. Hoje estamos com 6 milhões de vacinas para o Brasil todo. Isso é muito pouco, é absolutamente nada. Os profissionais de saúde que estavam no primeiro grupo de vacinação agora são os que estão na linha de frente. Então muitos não serão vacinados.
Reportagem – Teme que as fake news acabem reduzindo a procura pela vacina?
Natasha Slhessarenko – Com certeza. É muito triste ver, não só as fake news, mas os nossos governantes, nosso presidente em especial, falar que não vai tomar vacina ou que quem tomar vai virar jacaré. Isso deixa nós, médicos, profundamente irritados, porque sabemos que as vacinas revolucionaram o combate às doenças infectocontagiosas. Várias delas simplesmente desapareceram do Mundo graças à vacina. A primeira vacina desenvolvida foi para varíola na década de 70 e a doença foi irradicada do Mundo. Estavámos indo nesse mesmo caminho com o sarampo e a poliomelite, por exemplo. O Brasil já estava livre dessas doença só que, infelizmente, por causa das baixas coberturas vacinais, consequência do movimento antivacina, essas doenças acabaram voltando.
Então voltamos a ter problemas com casos de sarampo, poliomielite, coqueluche e difteria, que são doenças imunopreveníveis. As fake news destroem e trazem consequências extremamente desastrosas. Essa indústria existe não só para a questão da vacina, mas também sobre o tratamento precoce. Então, neste momento em que vivemos uma pandemia de dimensões como essa, sendo a maior crise sanitária e de saúde do Mundo nos últimos 100 anos, sem dúvida o que mais precisamos é de políticos e sociedade alinhados, falando a mesma língua, todos querendo realmente o melhor. Mas o que temos são "pessoas do mal" que ficam disseminando informações incorretas. Especialmente sobre algo extremamente valioso e importante no contexto de se fazer saúde, que é a vacinação.
Reportagem – Como médica, como é ver a constante negação da Ciência que estamos enfrentando atualmente?
Natasha Slhessarenko – Me sinto agredida. Muitas vezes vemos até mesmo colegas de profissão advogando [pelo movimento antivacina], dizendo que não vão se vacinar. É muito triste ver isso. É claro que gostaríamos de ter uma vacina com 100% de eficácia, mas o que temos agora vai ajudar a diminuir o número de casos graves e o número de pessoas contaminadas quando conseguirmos vacinar grande parte da população.
E é isso que interessa, é isso que precisamos fazer agora. Acho que já sofremos demais, temos um país de dimensões continentais, mas temos grandes vantagens com relação a outros países quando o assunto é vacina. Temos o Programa Nacional de Imunizações (PNI), que é modelo, extremamente bem sucedido e existe há 48 anos. O PNI distribui, de graça, uma quantidade enorme de vacinas para toda a população brasileira. Graças a ele conseguimos fazer as vacinas chegarem aos mais longíquos lugares do nosso País.
Precisamos riscar definitivamente da nossa agenda a questão das fake news. O Governo precisa ajudar a coibir esse tipo de propagação, porque só leva à desinformação, é um desserviço à sociedade.
Reportagem – Além das notícias mentirosas sobre as vacinas, também têm se falado muito sobre o tratamento precoce da Covid-19. Qual sua opinião?
Natasha Slhessarenko – Desde o início da pandemia isso [o tratamento precoce] também foi politizado. O Conselho Federal de Medicina, em março do ano passado, definiu a resolução 04/2020, que determina que cabe ao médico a autononia para definir se ele quer ou não quer entrar com medicamento sem comprovação científica, mas tem que ser deixado claro para o paciente que os tratamentos são de natureza experimental e que nenhum deles têm respaldo científico.
Tanto infectologistas quanto pneumologistas não acreditam no tratamento precoce.
Reportagem – Temos ouvido muito a respeito das novas cepas do coronavírus. Por que essas mutações acontecem?
Natasha Slhessarenko – Quando o vírus entra na célula do corpo humano, ele começa a se multiplicar bastante. É como se fossem tiradas várias fotocópias, mas quando você tira muitas cópias, às vezes algumas ficam mais falhas, outras mais fortes. E são essas diferentes cópias do vírus que são chamadas de mutação. Quando comparamos com a original, em geral é comum ter duas, até tres mutações. Mas quando tem mais que isso, dizemos que se criou uma nova linhagem.
Em dezembro foi descrita aquela mutação no Reino Unido, depois São Paulo descreveu a mesma, a n501y. Essa mutação é um tipo especial, que acontece exatamente no pedacinho da proteina spike do vírus. É ela quem dá a forma de "coroa" para o vírus. Spike é de espícula. Elas acontecem porque o vírus precisa se defender do nosso sistema imune. É como se ele também ficasse um pouco mais esperto.
Se nosso sistema imune ficar tão bom a ponto de matá-lo, ele não consgue mais viver. Se ninguém mais pegar o coronavirus, o vírus morre e pronto. Então ele se arma dessas mutações para poder se manter vivo, driblando nosso sistema imune.
Reportagem – Corremos o risco da vacina não ser eficaz para algumas dessas mutações?
Natasha Slhessarenko – A Coronavac provavelmente não apresentaria esse problema porque é feita a partir do vírus inteiro. É uma vacina de vírus inativado. Então, nosso organismo vai produzir anticorpos contra a partícula do vírus inteiro. Já as outras vacinas, que utilizam técnicas de vetor viral e RNA mensageiro, por exemplo, pode ser que sofram alguma interferência se o virús "mudar" demais.
Achamos que essas descritas até agora, com exceção dessa de Manaus, vão sim responder à vacina. Mas não é certeza, vamos precisar de mais tempo para saber. Outro ponto importante é saber se esses testes que temos no mercado vão detectar esses vírus. A de Manaus foi descrita muito recentemente, não dá para dizer, porque ainda não conseguiram fazer os exames. É importante sabermos que 60% dos pacientes que tiveram Covid em dezembro, em Manaus, foram através dessa nova linhagem. Então ela já estava circulando. Parece que realmente muitos casos em Manaus podem ter sido por reinfecção, ou seja a pessoa pegou de novo, mas uma linhagem diferente.
Reportagem – O infectologista Sérgio Cimerman, da Sociedade Brasileira de Infectologia, acredita que, quando for aplicada no público geral, a eficácia da Coronavac, que é de 50,38%, deve ser bem maior. A senhora também pensa dessa forma?
Natasha Slhessarenko – Mais importante que do que ficar preso na eficácia das vacinas, é incentivar a população que se vacine, criar mecanismo para que tenhamos a vacina. É importante que o Governo entre em negociação com a China, porque hoje a maioria dos insumos para produção das vacinas é de origem chinesa. A India é o maior produtor mundial de vacinas, mas a China é quem tem a matéria-prima. Então realmente precisamos ter relações comerciais boas com a China.
Precisamos trabalhar para conscientizar a população para que todos se vacinem, para que a vacina consiga chegar nos lugares mais longíquos do Brasil, para que então, com uma alta cobertura vacinal, consigamos reduzir a circulação do virus no nosso meio.
Reportagem- Mesmo após a vacina, as medidas de prevenção ao novo coronavírus serão mantidas, certo?
Natasha Slhessarenko – Isso é algo muito importante que a população entenda. Mesmo depois de vacinados ainda teremos que manter as medidas de prevenção. Primeiro porque temos que vacinar grande parte da população e isso vai levar provavelmente até final do ano. Segundo: a vacina tem que ser aplicada em duas doses. Então isso também requer tempo. Não adianta eu tomar vacina e achar que a partir do momento em que tomei está tudo certo. Grande parte da população tem que ser vacinada para então vermos se houve redução na circulação do vírus e se realmente essas mutações todas vão afetar a eficácia da vacina.
Reportagem – Estamos vivendo uma segunda onda de casos. Por que houve aquela queda nas contaminações no segundo semestre do ano passado e, de repente, essa explosão?
Natasha Slhessarenko – Atribuo a esse pico de casos aguns fatores. O primeiro foi o relaxamento das medidas de distanciamento social, das medidas de isolamento, aliado ao desenvolvimento de cepas, ao desenvolvimento de linhagens virais com maior transmissibilidade. Com isso temos esse aumento no número de casos. Estamos vivendo uma segunda onda ou um repique da primeira – o nome que quisermos dar, desde que se entenda que estamos realmente vivendo um aumento dos casos. Isso é visivel no Brasil e no Mundo todo.
Em Mato Grosso a quantidade de casos aumentou barbaramente. Lembro que no dia 23 de março, os prefeitos decretaram lockdown e estava bem no comecinho da pandemia. O primeiro caso foi descrito no Brasil em 26 de fevereiro. Então foi decretado o lockdown em Cuiabá e Várzea Grande, que na verdade são cidades que estão no meio do Brasil. Temos um certo atraso com relação às grandes cidades. A interiorização do vírus aconteceu por volta de maio. Tanto que o número maior de casos em Mato Grosso foi em junho e julho.
A partir daí as medidas começaram a ser tomadas, porque as medidas não são imediatas. Os resultados vão ser vistos, no mínimo, com 15 dias depois. Mas o que aconteceu no final do ano? Ninguém aguentava mais ficar em casa, todo mundo cansado e os governos liberaram encontros para 200/300 pessoas. Para "ajudar", vieram essas mutações que realmente têm transmissão maior, então a situação piorou. O vírus encontrou um ambente propício, com aglomerações e uma mutação que se transmite mais.
Reportagem – Acha que existe necessidade de um novo lockdown em Mato Grosso?
Natasha Slhessarenko – Com certeza absoluta, tem que dar uma diminuída nisso junto com a vacina chegando. Tem que decretar proibição de aglomerações de encontros com mais de 30/50 pessoas. São medidas que já estão muito bem definidas pela Anvisa e OMS. E é importante que sejam tomadas para evitar que mais vidas sejam perdidas.